EDUARDO BIAVATI
HISTERIA COLETIVA
entrevista: arthur viana, douglas freitas, gabriel rizzo hoewell | fotos: gabriel rizzo hoewell
entrevista originalmente publicada na Revista Bastião, edição #12
Bastião - Por que as pessoas, quando sentam atrás de um volante, se transformam em animais irracionais? Por que se tem tanta pressa, tanta raiva?
Eduardo Biavati - Essa é uma situação que tem relação direta com a desigualdade no trânsito. Em sociedades que são muito desiguais, você observa mais essa conduta agressiva, que na verdade é uma maneira de anunciar, simbolicamente, que o espaço público tem dono, e o dono é quem tem dinheiro. Quem tem dinheiro tem carro, paga imposto e, já que paga imposto, a rua é sua, está marcada. Em sociedades mais igualitárias, onde a renda é melhor distribuída e há um outro patamar de fiscalização de condutas, você não vai observar tão frequentemente esse tipo de comportamento. Em uma sociedade como a nossa, muito desigual, com degraus muito acentuados de renda, o carro ainda é uma marcação de status. As pessoas anunciam esse status dessa maneira agressiva no trânsito.
O trânsito é, então, um reflexo da sociedade?
Com certeza. Basta você ver as calçadas: de onde estamos até a esquina, você cai em algum buraco. No asfalto, não. Então fica assim: quem está a pé, dane-se. É ralé. Bando de pobre que não tem carro. Muita gente ainda vê assim.
O que precisa ser feito para que se mude essa mentalidade?
Tem uma questão de mentalidade e tem também uma questão muito concreta de construção da cidade. Não é que o poder público esqueceu as calçadas. Não. A calçada sequer foi considerada. Muito dessa luta para mudar tem a ver com um esforço difícil de falar para os condutores de veículos que o carro que eles compraram é deles, mas já a rua, não. Em nenhum lugar você vai ler que você tem direito de estacionar seu carro em via pública. Muitas cidades nos Estados Unidos vêm fechando vagas de estacionamento; os motoristas ficam possessos. Mas isso é problema deles, não da cidade. Virem-se. Não tem onde parar, deixa na garagem. Vai andando, vai de bicicleta. Se olharmos para o chão da cidade e a forma como os espaços estão distribuídos, veremos que tem calçada que tem árvore no meio. É como a ciclovia inaugurada na Restinga: é uma coisa mesquinha. Se você não sabe ou não quer fazer, não faça. Agora, botar uma ciclovia com árvores e postes no meio... o que vai acontecer? A bicicleta vai cair para o asfalto. É mais plano, é mais confortável. Só que é muito mais perigoso. Então você vê bem como o poder público determina o comportamento das pessoas.
A melhoria de rodovias e calçadas resolveria parte dos problemas no trânsito?
O espaço viário das cidades é limitado, a gente não tem como ficar destruindo prédio. Isso já aconteceu: do final do século XIX até o início do século XX as cidades foram derrubadas. Mas se o espaço é limitado, o que podemos fazer? Reequacioná-lo. Em favor de quem? Dos mais frágeis, que são os pedestres, os ciclistas e até mesmo os motociclistas. Em inglês existe uma expressão ótima:“liveable streets”. São “ruas vivenciáveis”. Em português fica ridículo, mas em inglês dá para entender muito bem: é uma rua na qual a população não só transita, mas também para para ver a rua, para conversar, namorar, descansar. É uma questão do poder público intervir no espaço para torná-lo mais equilibrado. Não é acabar com os carros: é equilibrar. Eu vi uma estatística de uma urbanista em São Paulo, no ano passado, que mostrava que 60% do espaço viário na cidade era designado para os carros. O resto que se vire. Isso é resultado de decisões muito concretas tomadas ao longo de muitas décadas. É possível mudar, mas alguém vai perder. Não dá para agradar todo mundo. Se eu pudesse decidir, acabava com os carros em toda a Protásio Alves. Eu daria uma faixa a mais para ônibus e outra faixa inteira para calçada e ciclovia. Ia ser uma revolução em Porto Alegre. Quem tem carro que se vire. Vai ficar parado, engarrafado, comendo fumaça.
Mas como uma iniciativa dessas poderia partir de um político, se a maioria dos eleitores tem a mentalidade de motorista?
A questão não é quantos eleitores são motorizados e quantos não são. Coincide que os cidadãos motorizados são, também, os que tiveram renda para ter educação. E é quem se expressa, quem vai escrever carta para a Zero Hora. Os mais desprivilegiados na questão da mobilidade também são desprivilegiados educacionalmente e, consequentemente, na capacidade de serem ouvidos. Não é que eles não tenham opinião, só não têm espaço para opinião. Vamos supor que eu fosse prefeito e falasse desse plano para a Protásio Alves. Sairiam editoriais e publicariam cartas que massacrariam a ideia. Ninguém que tem carro vai aceitar de barato não poder andar de carro, porque é realmente uma questão de status social. Quer ver uma prova disso? Quando começou a Lei Seca, vários bares ofereceram táxi, mas logo a iniciativa morreu: as pessoas não queriam voltar de táxi, elas queriam ir de carro. Elas continuaram peitando a fiscalização, pois o que está em jogo não é pegar ou não táxi, mas sim usar ou não o meu carro quando eu quiser.
A Lei Seca funcionou no Brasil?
Está funcionando. Estima-se que metade das mortes no final de semana tem envolvimento de álcool. A outra metade tem outras causas. Velocidade, falta de cinto, de capacete... mil coisas podem matar uma pessoa no trânsito. Claro que o álcool é um elemento agravante. A Lei Seca jamais surgiu para eliminar a morte no trânsito, embora a mídia tenha cobrado isso. Ela surgiu como elemento de controle do beber e dirigir. Qual a ideia mais importante da lei? Não beber e dirigir. Ou, se tiver bebido, não seguir viagem. Muitas vezes a blitz serve de alerta para que a pessoa não siga viagem. Em Brasília, onde as vias não têm muitas saídas, dependendo de onde a blitz está, você enxerga as luzes das sirenes piscando e não tem para onde fugir. Muita gente simplesmente parava o carro, morrendo de sono, e esperava até o dia amanhecer e a polícia ir embora. Se fosse para frente, caía na blitz. Aí você fala: “Pô, esse cara escapou”. Não, ele caiu na Lei Seca, porque ele não seguiu viagem. O mais importante não é quantos foram presos ou quantos pagaram multa, mas sim quantos não seguiram viagem depois de ter bebido – ou sequer pegaram o carro.
E isso não está nas estatísticas.
Não. Muitos adotaram outras estratégias: hoje um não bebe, vão beber na casa de alguém, vão de taxi, coisa que não acontecia. Isso não está medido. O sucesso da Lei Seca foi primeiro mostrar para as pessoas que o álcool era inaceitável, era uma droga. Ninguém pensava assim até então. Segundo foi impor uma repressão da viagem alcoolizada. O resultado concreto foi que os acidentes que continuaram acontecendo foram menos graves. Como você sabe disso? Você vê no número de internações e no número de resgates da SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), que caiu, no Rio de Janeiro, 40%. Caiu muito.
É possível que exista algum lobby das grandes montadoras para que a mídia de massa não assuma posições contrárias aos interesses dessas empresas?
Eu não tenho conhecimento de nenhum tipo de represália que montadoras tenham feito contra jornais porque teve editorial a favor da Lei Seca ou da bicicleta. Tem outra maneira de você fazer isso. Vou dar um exemplo bem recente: a Trip fez uma edição inteira sobre bicicleta. Mas a revista tem doze páginas duplas de anúncios de carro. O recado é o seguinte: “Vocês querem bicicleta, ok. Você pode ter bicicleta, mas compra um BMW”. É mais sutil. É muito mais profundo e eficiente confundir a opinião oposta do que confrontá-la. É o que fez a indústria do cigarro. E os encadeamentos das coisas são muito maiores do que a gente pode imaginar. São tão grandes, tão profundos, que basta eu dizer uma coisa para vocês: até 2014, o Brasil vai receber nove fábricas de automóveis. Por quê? Porque anos atrás, as grandes montadoras perceberam que é só no Brasil e em outros países emergentes que vai vender carro. Aí você vê esse movimento de baixar juros, carros mais modernos, e fala: “Pô, que legal, né?”. Legal nada: tudo planejado. É você que está caindo de trouxa. Você que chegou agora, eles já estão olhando para isso há muito tempo. Então você acha que eles vão se importar com essa discussão?
A tendência é que continue crescendo a frota mundial?
É. E a previsão da indústria global automobilística é de que de 2020 até 2050 todo aumento da frota vai ser fora da Europa, Estados Unidos e Japão.
As cidades vão parar?
Eu morei em São Paulo por sete anos antes de vir para Porto Alegre e cansei de ouvir que ia parar. “Ah, não, agora não tem jeito, vai parar.” “Meu deus do céu, vai parar!” Parou? Não. Está cada vez pior? Sim. Tem um limite máximo.
Mesmo assim, o governo incentiva a redução do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados).
Para que se compre mais carros. Eu sei que é péssimo, mas do ponto de vista do governo não tem outra coisa a fazer. Recentemente, o governo anunciou o PAC Equipamentos. Eu abri o site do governo federal e descobri que ele não só baixou os juros como ele vai comprar 60% da produção de tratores e 30% da produção de ônibus no segundo semestre. Aí eu também quero. O governo vem e compra tudo, não tem nem que fazer propaganda. Mas por quê? Porque a indústria estava anunciando que ia demitir em massa no segundo semestre. O governo vai deixar um milhão de pessoas perder emprego? Dane-se a rua, a cidade. Depois a gente resolve isso. Tem que manter emprego. Claro que, a longo prazo, é dar um tiro no pé. Mas as cidades não vão parar: antes disso, elas vão degradar a qualidade de vida das pessoas. Como é São Paulo. Por mais que Porto Alegre esteja em uma situação cada vez mais crítica, nem se compara com São Paulo. Eu passei a dormir, aqui, duas horas a mais do que eu dormia lá. Não tem barulho. Se eu ficassse em São Paulo mais um, dois, dez anos, o trânsito ia parar? Não. Antes de parar, eu ia ficar doente. A qualidade de vida vai degradando e você nem percebe. Você começa a ficar nervoso e não sabe por quê. Você dorme mal. O que a gente não percebe é que essas coisas são cumulativas. Antes da cidade parar, nós teremos nos matado. Nós teremos pisado uns nos pescoços dos outros sem nem saber por quê. Quanto mais intenso é o fluxo de veículos motorizados, maior é o barulho, maior é a poluição, mais buzina... vai virando uma histeria coletiva. Não é só que os tempos de viagem vão ser maiores, que o consumo de combustível vai ser maior: a sociabilidade na cidade vai ficar cada vez pior. A rua torna-se um lugar cada vez mais sujo e barulhento. Não é para você caminhar: é para fugir dali. É um lugar horroroso. São Paulo é assim. A rua é um lugar sujo sob todos aspectos. A cidade vira uma droga.
Na questão da bicicleta: Porto Alegre, até pelo seu relevo, tem condições de implementar um plano cicloviário grande?
Eu não vejo por que não. Claro, tem lombas, mas não em todo lugar. Essa coisa de “ah, no inverno é frio”... na Holanda e na Dinamarca você vê o pessoal pedalando na neve. Dá para pedalar com chuva, com neve, com terreno acidentado. O problema é a condição viária para você pedalar. Esse é o problema, o resto tudo é desculpa. São problemas políticos. A questão técnica está resolvida. Tem que ter um plano político, um querer político.
Tu não acha que, assim como existe uma escola para motoristas, seria necessária uma escola para ciclistas?
Uma das coisas mais legais que tem nos Estados Unidos, em muitas cidades, é que a educação para o trânsito é de pedestres e ciclistas. As crianças, lá pela 3ª série, começam a ter oficina de bicicleta. Como desmontar, regular o freio, trocar o pneu, ajustar o tamanho do banco, subir um obstáculo. A criança vai sendo habilitada a ser ciclista. E, antes disso, bem pequena, ela foi habilitada a ser pedestre. O que falta aqui é esse treinamento do usuário. Compra a bicicleta e faz o quê? Vai para a calçada, para cima das pessoas? Vai sem capacete?
A impressão que passa é que o próprio ciclista às vezes fica raivoso com o trânsito, querendo responder aos carros na mesma moeda, sem respeitar. Isso existe?
É a ação e reação. O espaço foi monopolizado pelos veículos motorizados. O ciclista, se ele for consciente, não vai na calçada. Mas na pista ninguém o respeita. Em São Paulo, os ciclistas estão ocupando um lugar dentro da pista, como se a bicicleta fosse um carro. Quem quiser que vá atrás. São loucos. Em avenidas grandonas, os caras não vão no cantinho, eles vão na pista. É uma resposta agressiva a uma exclusão agressiva. As pessoas poderiam ceder espaço, mas não cedem. Então vai na força.
Medidas mais impositivas, como rodízio de carros e pedágio urbano, são soluções para o trânsito?
São medidas economicamente injustas e com vida útil pequena. O rodízio em São Paulo não tem mais efeito. Podem ser estratégias complementares. A estratégia principal é a seguinte: esse espaço viário está fechado para o carro. Você não tem onde estacionar, a prefeitura não vai mais autorizar estacionamentos em prédios. Você pode ir de carro, só não tem onde parar. Claro que quem tem carro vai espumar de raiva, mas azar.
Mas, ao fazer isso, o poder público tem que oferecer outros meios para a pessoa chegar ao seu destino.
Se você fechou o espaço para vagas de estacionamento, você pode ter duas faixas de ônibus. Os corredores hoje são muito miseráveis, os ônibus são obrigados a andar em comboio, um atrás do outro. Não tem como ultrapassar, já que o espaço ao lado é do carro. Se você privilegia o veículo individual, a velocidade média no corredor de ônibus reduz. Ao tirar o carro e passar uma faixa para o corredor, a velocidade média sobe. Aí você vai descobrir que é mais rápido ir de ônibus que de carro. A intenção é essa: desvalorizar o transporte individual. De certa maneira, você vai ter que redividir o espaço. Vai perder o meio de transporte individual, não tem outro jeito. É possível fazer isso? Em termos técnicos, sim. Em termos políticos, prepare-se para o mundo virar de cabeça para baixo. Não existe solução fácil, mas não existe solução impossível também. Em nome de quem você vai governar? Eu vejo as bicicletas e as calçadas com esse poder de dizer para a comunidade que os mais frágeis têm prioridade. Esse é o ponto de partida.
Tentando compreender a involução humana atrás de um volante, o Bastião foi conversar com Eduardo Biavati, sociólogo especialista em educação e segurança no trânsito.
A única lei vigente é a do mais forte. O dia a dia é barulhento, sujo e desigual, e o egoísmo impera, soberano. Cada um por si e salve-se quem puder. O cheiro de fumaça sobe podre por canos de escapamento, minimizando as condições de vida e degradando o ambiente. Logo se forma uma interminável fila de animais agressivos trancafiados em latas sobre rodas – latas que, ao longo dos anos, brutalizaram de forma impressionante o ser humano. O panorama do primitivismo no trânsito é assustador. Apesar do constante aumento de veículos nas ruas, Eduardo Biavati, que teve participação direta na elaboração do atual Código de Trânsito Brasileiro e é referência em questões relativas ao tema, garante que as cidades não vão parar: “Antes de as cidades pararem, nós teremos nos matado. Nós teremos pisado uns nos pescoços dos outros sem nem saber por quê. Quanto mais intenso é o fluxo de veículos motorizados, maior é o barulho, maior é a poluição, mais buzina... vai virando uma histeria coletiva”.
