Até hoje eu não sei bem como o CD “Só no forévis”, dos Raimundos, apareceu no meu quarto. Só sei que apareceu – talvez por uma intervenção divina, preocupada com o presente de Natal recém ganhado (o CD “Interfone”, do Só Pra Contrariar). Eu tinha 10 anos, e ali, ouvindo que “para poupar camisinha, mandei encapar meu pau”, começava a moldar o meu caráter.
Treze anos depois, o Digão me atende: “Claro, cara. Me encontra ali no Apolinário”. Pro Apolinário, na José do Patrocínio, eu fui, mas ele não. Ligo de volta e, em meio às desculpas, Digão muda o local do encontro para o hotel em que ele estava hospedado, ali pertinho, na Lima e Silva. Chego rápido. Após resolver um problema no check-in, subimos para o quarto no terceiro andar. O elevador é apertado. Digão fala sobre a sua filha recém-nascida. Lamenta estar longe, mas está acostumado com a estrada. São vinte anos tocando pelo Brasil.
Entra no quarto, tira os tênis e se atira na cama.
Assim, bem à vontade, espraiado em sua cama de hotel na Cidade Baixa, que Digão, vocalista e guitarrista dos Raimundos, me recebeu. Durante uma hora, conversamos sobre os rumos do rock, da banda, novas formas de financiamento no cenário da música, protestos e política. Sem preocupações, Digão falou também sobre a saída de Rodolfo dos Raimundos, ainda em 2001, e o fim da amizade entre eles: “É um cara que eu me amarrava, mas desde que a gente foi pra São Paulo ele mudou. Ele realmente não soube lidar com o sucesso”, comenta.
Putaria, drogas, bebida – havia limite para a bagaceirada?
Era chutar o balde pra ver até onde ia. A gente falava de maconha, de boceta, de putaria, de bater o carro, de fazer merda. Era a nossa vida, as coisas engraçadas que a gente passou. Mas a gente era muito consciente de que em certo ponto não poderíamos falar certas coisas. Eu sei onde é o meu lugar. A gente nunca pensou “eu quero que fale palavrão ao meio-dia na Globo”. Não. Tem horário pra tudo. A gente tem que respeitar também. E o palavrão que o Raimundos falava não era uma coisa gratuita. É o jeito que falamos. “Porra, liga esse negócio aqui”. “Porra, faz isso”. É diferente, é a nossa linguagem.
O espírito Raimundo
O espírito segue, mas acho que não tão inconsequente. Não tem como não mudar, não tem como você não crescer um pouco. Mas a gente mantém o espírito. Ainda falamos muita merda, então a gente tenta passar isso. Lógico que deu uma amadurecida, mas mantemos a mesma linha.
Por mais que o Raimundos falasse de putaria, tinha uma música ou outra com conotação política. É como fizemos com “Politics” [música lançada em julho deste ano], que é uma música totalmente política. Em nenhum momento ela fala “boceta”. Fala de uma puta mal paga, mas é o nosso jeito. O sentido da letra é totalmente político – que, por sinal, foi feita antes das manifestações. Acabamos lançando durante os protestos por acharmos que era um momento oportuno, pra gente colaborar com o Brasil. Eu acho que os Raimundos tinham que dar seu posicionamento.
A internet no mercado da música
A internet, ao mesmo tempo em que facilita, ela dificulta. É uma faca de dois gumes. Se você não fizer algo muito bom, que chame atenção mesmo, você fica perdido no espaço. Na época das gravadoras, de repente uma banda nem era tão boa assim, mas, como a gravadora insiste, insiste... era água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Isso funcionava, acabava virando hit nacional. Agora não. Agora é uma coisa muito diluída. É muita banda, muita informação. É um acesso tão fácil à informação que de repente não se dá tanto valor a ela.
Compartilhamento de arquivos na rede
Essa é uma coisa que não tem pra onde você correr. Não adianta. O Metallica fez isso e acabou se fodendo. A internet é um campo livre, sem dono. Neguinho vai compartilhar filme, vai compartilhar música, vai compartilhar tudo ali – até foto que não devia ser compartilhada...
Novas formas de financiamento
Apareceu algo: o crowdfunding. É uma nova alternativa pras bandas. É que nem show: hoje, todo mundo compra o ingresso antecipado. É a mesma coisa que tá acontecendo com o disco. Nós fizemos um crowdfunding.
Agora é diferente, tem uma fidelização maior. Quem é fã do Raimundos quer ver a banda continuar, quer ver a banda fazendo disco. Então ele tá comprando o disco, ele tá fazendo a banda continuar. O crowdfunding é a mesma coisa que o fã comprar ingresso pro show. No caso, ele tá comprando o disco – autografado e que ele vai receber em casa. Imagina isso na época que a gente era de gravadora. Isso era impossível, receber o disco em casa, autografado, ou comprar uma camiseta, comprar alguma coisa e saber que, com isso, você está ajudando a banda.
“Ó, tá vendo, Raimundos não vende mais” – mas ninguém vende mais!
Talvez o Roberto Carlos venda, mas só porque é o Roberto Carlos.
A Anitta vendeu 50 mil discos. No auge, nós vendemos 600 mil.
A campanha de crowdfunding
Pra mim foi uma grande surpresa. Lógico, Raimundos é uma banda conhecida, já tem nome... mas faz dez anos que nós mudamos, estamos com uma nova formação. Lá no começo diziam “aquela banda acabou, Raimundos já era...”. E não foi só pela saída do Rodolfo, foi uma questão de mercado, que encolheu em 2001. Foi tudo ao mesmo tempo, então ficou um estigma ruim. “Ó, tá vendo, Raimundos não vende mais” – mas ninguém vende mais! Talvez o Roberto Carlos venda, mas só porque é o Roberto Carlos. A Anitta vendeu 50 mil discos. No auge, nós vendemos 600 mil. E hoje é “uau, Anitta”, Globo... com 50 mil cópias. Então que ninguém venha cobrar de mim que “vocês não vendem mais que nem antes”. Ninguém vende. Só que o crowdfunding mudou esse jogo. E a gente vendeu, cara. A gente tá vendendo. O suficiente pra fazer a gente gravar o disco, pagar o disco e a divulgação. Acabou. Isso tá sendo legal.
O cenário musical atual e o papel dos Raimundos
Eu acho que ficou muito segmentado em dois estilos. Não é como na nossa época, que eram vários. Você tinha banda de reggae, uma banda pesadona, uma banda de metal, de hardcore, tinha os Raimundos, com o forró-core. Agora não. Ou todo mundo segue na linha indie ou tava indo naquela linha do emo, que agora meio que miou. Eu não sei, eu acho isso meio perigoso. A música tem que ter uma variedade grande. Tem muito gosto diferente, não é todo mundo que tem o gosto igual.
É importante afirmar nossa posição, manter a nossa linha. Eu gosto de música. Quando eu escuto alguma banda eu penso: “Porra, que banda foda”. Só que a última banda que eu falei isso foi System of a Down. Depois, nenhuma outra banda me disse alguma coisa assim, que eu falasse “caralho, que banda foda”. De ficar ouvindo o som meio Beavis & Butt-Head, sabe? Diferente, pesado – mas música; eu não gosto de barulho. Não importa a manifestação, se ela for boa, eu vou gostar.
Os Raimundos pós-Rodolfo
Eu me questionei muito quando o Rodolfo saiu. Eu falei: “Velho, por que eu tenho que acabar a banda só porque o cara saiu? Por quê? Ele que saiu, não foi eu.” Ele que não concorda, então beleza, vambora.
Nunca pensei em parar, nunca. Quando eu comecei a tocar violão, eu tava com meus amigos e sempre me chamavam nas rodinhas pra eu tocar e cantar as músicas, e eu entretinha a galera. Foi isso que me ajudou. Porque, cara, se eu consigo fazer isso, por que eu não consigo fazer isso com os Raimundos? E aí foi indo. Eu vi que no show rolava. Eu gosto do público, eu gosto de conversar com o público, de interagir, de fazer o
show. O som dos Raimundos hoje é muito melhor do que no passado. Lógico, aquelas músicas do começo são fenomenais, mas, porra, não foi só o Rodolfo que fez as músicas. Foi eu, o Rodolfo, o Canisso e o Fred. Se você for olhar as músicas dos Raimundos, 90% têm meu nome. Mas as pessoas na época falavam “não, porque o Rodolfo fazia tudo”. Não era. “Me lambe” começou comigo, “Esporrei na manivela” é minha, o riff de “Mulher de fases” é meu. Porra, vou te falar uma porrada de músicas. “Tora tora”, “Opa perai caceta” a ideia é minha, “Eu quero ver o oco”, que é o hino dos Raimundos, começou comigo - de manhã no hotel, eu falei “hoje a gente vai fazer uma música Beavis & Butt-Head, eles vão escutar e falar ‘rwa rwa’!”. Sacou? E foi assim. Aí já cheguei no estúdio, coloquei em ré e já comecei a tocar.
Aí o cara encontra ele dez anos depois... eu fiquei na minha, porque eu to bem, eu to tranquilo Eu venci essa merda aí. Que nem ele falou outro dia que jogou os Raimundos no mato. Peraí! Os Raimundos não são só seu não, velho. Como é que você pega uma coisa que não é só sua e joga no mato? Não pode. Então, quando encontramos com ele, ele veio todo nervoso falar comigo. “Eu te amo, eu te amo”. Todo alterado. Fiquei na minha, “falou, beleza” e tal.
O recomeço dos Raimundos
Em 2007, quando o Canisso voltou pra banda e eu assumi os controles, foi aí que eu comecei a ser como eu queria ser. E eu acho que o Raimundos recomeçou em 2007. Não foi em 2001, quando a gente teve que gravar o “Kavookavala” correndo, e depois gravou o “Ponto Qualquer Coisa” e a banda só afundando, afundando, afundando. Não era aquilo. Eu não me sentia bem ali. Eu comecei a me sentir bem em 2007, quando eu falei: “Eu que vou direcionar a banda agora”. Aí eu chamei o Canisso de volta. A gente juntou, reformulou, recomeçou do zero e veio crescendo, crescendo, crescendo. Aí sim. Então, a gente conseguiu, cara, depois desses anos, a gente conseguiu credibilidade de novo. As pessoas estão acreditando. Por quê? Porque elas foram no show, elas viram o show. Então, porra, a banda está do caralho. Isso é a maior vitória do mundo.
A forma da gente se manter, porque, porra, pirataria, porra, lançou já tá lá no Piratebay, pronto. Então o que a gente fez... paga dez contos, a gente te dá um download de ótima qualidade, de uma fonte boa, e você ganha o teu certificado de que ajudou os Raimundos. É uma coisa legal [o crowdfunding], uma coisa diferente, uma coisa pra quem é fã da banda. E tem uma molecada nova aí comprando... Porra, não é muita gente que precisa. Cara, na boa, você com mil pessoas chega a conseguir R$ 80 mil. Com mil pessoas, cara!
O fim da MTV
A MTV tá tendo um fim, mas não é de graça. Ela buscou isso. A MTV infelizmente... há muitos anos eu não concordo com ela. É que nem o Flamengo, sabe? Eu sou flamenguista, mas eu não concordo com a política do clube. Como é que eu vou torcer pra uma coisa que eu não concordo? “Ah, mas você é flamenguista”. É como se eu tivesse que acreditar. Não, velho, eu tenho fé! Eu vou apostar naquilo que eu sei que ta fazendo direito a coisa. É o mesmo caso dos meus fãs. Por que eles tão comprando? Por que eles já viram o show. Eu provei pra eles que os Raimundos continuam legais. Então é a mesma coisa. Eu não vou apostar numa coisa que eu não acredito. Não vou, não vou mesmo.
A MTV, depois que o Rodolfo saiu, ficou meio cética, assim como todo mundo. Era uma parcela muito maior que não acreditava e uma bem menor que acreditava. Aí a gente foi trabalhando pelas beiradas, comendo pelas beiradas, trabalhando, trabalhando, trabalhando, trabalhando, trabalhando. E de repente neguinho começou a ver o show... “Pô, o show é legal”... Aí os contrários ficaram “Pô, o show dos Raimundos é legal”. Fizemos numa casa aqui e encheu. Aí pum. Começou. Pum, pum, pum.
Em 2011, lançamos o DVD [“Roda Viva”]. O que o DVD fez? Ele pegou aqueles preguiçosos que ficam na internet dizendo “Raimundos acabou, Raimundos é uma merda, quando o Rodolfo saiu acabou a banda”. Eu me pergunto: esses caras foram em algum show atual? Não foram. Todos que foram no show, depois falaram na internet: “Cara, mermão, eu era o cara que mais falava mal dos Raimundos, mas aí eu fui no show e pô, véio, tá do caralho, porra que foda, obrigado, que bom que você não acabou com a banda”. É o que eu mais escuto, cara. Então é isso. A gente virou a página, sabe?
Fora do Eixo
O Raimundos nunca trabalhou com o Fora do Eixo. A gente nunca entrou nessa onda aí desses festivais alternativinhos e tal, porque eu nunca gostei. Eu sempre achei a política deles... porra, eles sempre abusaram das bandas, sabe? Da ingenuidade dessas bandas novas, de estarem com sede de ter um palco, de ter uma coisa.
Na verdade eu não conheço a fundo como que funciona, mas pelo que eu ouvi falar é o que eu já desconfiava, então a gente sempre caminhou fora disso. Que é os caras tocarem por hora de ensaio, ter que trabalhar, fazer som de outro e não ganhar nada, ter no máximo só o custo de ir lá. Porra, velho, não é assim que funciona. Eu vivo de musica. Eu tenho que ganhar dinheiro, velho. Qual o problema com isso? Não, o neguinho quer se aproveitar de muita gente que é ingênua e falar “porra, banda, banda não tem que ganhar dinheiro, pô. É arte, o cara faz pela arte...”. Não, peraí, porra. Ninguém aqui é bancário a semana toda e final de semana viaja pra tocar de hobby. Não é assim que funciona. É a minha vida, eu dedico a minha vida, eu passo a semana pensando nos Raimundos, resolvendo, trabalhando. E não tem como eu ter um outro emprego. Não é por aí, eu nasci pra ser o cara dos Raimundos. Então as bandas tem esse direito também. Não tem que achar que só porque é da banda não tem que ganhar dinheiro, tem que ser punk. Não existe isso. Porra, é uma ideologia idiota, sabe? É um pensamento muito mesquinho. Ao mesmo tempo que ele parece ser um pensamento “óóó”, não, é um pensamento babaca achar que as bandas não tem que ganhar dinheiro. E é o que ta acontecendo aí com o Fora do Eixo. Pô, to vendo mó galera aí que já foi né, o próprio Gabriel, do Autoramas. Eu to vendo vários depoimentos e tal.
A hora do pagamento é o famoso “veja bem”. Cara, eu já passei por isso. Quando a gente reposicionou a banda, mermão, imagina uma banda que viajava com 20 pessoas passsar a viajar só com um técnico de som. Tem gente que numa hora dessas se enforca, se mata. Por quê? Porque vive do passado. Por mais que eu tenha continuado os Raimundos, eu não vivo do passado. Eu vivo do presente. Eu ralei, velho. Você não engana ninguém muito tempo. E eu me garanto. O Raimundos se garante no show. Tem um monte de banda aí que morre de medo de tocar depois da gente. Inclusive a gente tem tido muito problema em festival, porque tem bandas que não passaram pelo que os Raimundos passaram, que continuam com a mesma formação, tudo lindo, e fazem manobra pra que a gente toque por último. Não preciso dizer mais nada, né, velho?
Reportagem realizada em 12/08


A relação com Rodolfo hoje.
O que eu penso do Rodolfo não mudou. É um cara que eu me amarrava, mas desde que a gente foi pra São Paulo ele mudou. Ele realmente não soube lidar com o sucesso. Ele mudou como pessoa. Aí virou uma competição muito grande dentro da banda. Mas beleza, até aí a gente até releva. É normal, o cara é vocalista, muita gente babando ovo, o cara dá uma balançada. Mas a forma como ele saiu da banda, ele exacerbou esse negócio dele, entendeu? Aí a amizade realmente acabou ali. Tudo bem o cara querer sair, beleza. Só que a gente tinha vários contratos, várias coisas que não é assim pra deixar. E se fosse uma empresa, sabe? Com advogados e coisas cuidando, não iam deixar jamais o cara largar... “Se você quer sair, beleza. Mas você tem que pagar uma indenização pra quem vai ficar, porque você está prejudicando”. Essa é minha mágoa com o Rodolfo. A gente foi amigo dele, ele não foi amigo de ninguém. A gente quebrou o contrato, a gente permitiu que se quebrasse o contrato pra deixar ele ir. Pra depois o cara sair e ficar falando um monte de merdas dos Raimundos. Falando que o Raimundos era o mal. Ah, velho, vai tomar no cu, porra.


NA CAMA COM DIGÃO
entrevista: arthur viana | texto: arthur viana | fotos: andré lacasi