JÉFERSON ASSUMÇÃO
A CULTURA VEM DA RUA
entrevista: arthur viana, sergio trentini | fotos: andré lacasi
entrevista originalmente publicada na Revista Bastião, edição #13

Jéferson Assumção, ex-camelô e hoje secretário-adjunto de Cultura do Rio Grande do Sul, analisa os vícios da cultura brasileira e o nosso anafalbetismo cultural.
Logo percebemos que estava à nossa frente um homem inteligente. Da cabeça de cabelos ralos de Jéferson Assumção, secretário-adjunto do Rio Grande do Sul, a clara ideia da necessidade de políticas que incentivem a leitura para que, dessa forma, a sociedade brasileira consiga enfim democratizar a cultura em todos os seus vieses, explorando positivamente nossa diversidade e criatividade. Se a cultura é às vezes mal distribuída, é também, ao mesmo tempo, quase sempre mal compreendida. “O Brasil tem um déficit grande no campo de alfabetização, mas maior ainda no campo da leitura cultural”, explica Jéferson. Seus olhos profundos, aumentados pela grossa lente dos óculos de armação redonda, não alcançam a profundidade do discurso do homem que, anos atrás, era camelô nas ruas de Canoas. Talvez seja exatamente daí que venha a complexidade intelectual do hoje secretário-adjunto de Cultura do estado – afinal, nenhum professor ensina mais do que a vivência da rua.
Bastião – A tua trajetória se iniciou nas ruas. Como foi esse começo?
Jéferson Assumção – Eu fui camelô por oito anos, a partir dos meus 13. Aproveitei muito bem aquele período lendo bastante, eu lia o tempo todo. Em função disso, me tornei um ser um pouco folclórico: o camelô que manjava de Tchecov. Quando tinha alguma efemere ligada à leitura, os caras iam lá me entrevistar. Então eu já tinha essa certa relação com o mundo do jornalismo. Com o tempo veio uma oportunidade de entrar para um jornal, o Radar de Canoas, onde fiquei dos 22 até os 29 anos. Depois passei a trabalhar no jornalismo sindical. Ali tive contato com o Fórum Social Mundial. Me incluí muito nessa discussão, participei de três anos. Eu fazia a biblioteca do fórum. A partir daí, comecei a ter bastante ação nesse campo da relação do livro com a cultura. Em 2000, publiquei um livro chamado Máquina de destruir leitores, sobre a escola. É um pouco de reflexão sobre a política de livro e leitura e como a escola é mais um espaço que afasta a relação cultural com a leitura do que aproxima. Uma teorização leiga sobre o tema, mas que abriu portas importantes. Depois eu fui convidado para trabalhar em Brasília. Comecei no INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira), importantíssimo para quem se interessa pela sociologia da leitura, é um espaço riquíssimo nesse aspecto. Logo que estava lá fui convidado pelo Juca Ferreira, secretário-executivo na época do Gilberto Gil, para o Ministério da Cultura, onde fui assessor e coordenador-geral de livro e leitura. Em determinado momento, eu percebi que tinha saído de uma banca de camelô para coordenar a política de livro e leitura do país inteiro.
O povo brasileiro lê pouco?
O Brasil lê muito pouco. A origem disso é sociológica, histórica, antropológica, econômica, educacional... Hoje, nós temos um índice de analfabetismo absoluto no Brasil de 10%, que repercute em todos outros tipos de analfabetismo – funcional e até no chamado analfabetismo cultural, que é aquele de quem domina a tecnologia mas não faz um uso cultural daquilo. O Brasil tem um déficit grande no campo de alfabetização, mas maior ainda no campo da leitura cultural. Por exemplo: em 2003, dos 5.500 municípios brasileiros, 1.170 não tinham bibliotecas. No século XIX, a Argentina já tinha, em todos os seus municípios, pelo menos uma biblioteca. Os sistemas de bibliotecas no Chile, na Colômbia e na Argentina são muito eficientes, muito bons. São bibliotecas-centros culturais. No Brasil, era proibido fazer livro até 1808. A indústria do livro no Brasil começou no século XX, com a expansão da rede escolar e o início do MEC (Ministério da Educação e Cultura). Basicamente, o povo brasileiro é formado pela população indígena, ágrafa; pela população negra, que veio do escravismo, também ágrafa; e pelos portugueses, que tinham o pior índice de alfabetização na Europa. Então não fica muito favorável o ambiente para a educação. É diferente da Colômbia, que tem uma universidade desde 1537.
E como solucionar esse nosso analfabetismo cultural?
Toda biblioteca tem que se transformar num pequeno centro cultural. Nós temos 534 bibliotecas públicas municipais no Estado, e temos que transformá-las em centros culturais. Tem que ter música, teatro, artes visuais... Tem que chamar a atenção de todo mundo. A biblioteca é o principal instrumento na formação da leitura cultural. Tem que ter, também, uma escola que saiba formar leitores. Isso é uma coisa difícil, mas tem que cada vez mais formar o leitor por dentro da escola. Além disso, tem que existir famílias de leitores. Temos que ter ações nesse sentido. Vamos começar a implementar os “agentes da leitura”. São 220 agentes que vão nas famílias para estimular o hábito da leitura nas casas. E temos, também, dois elementos quantitativos, que são o acesso ao livro – um número suficiente de bibliotecas, bibliotecas realmente impactantes do ponto de vista cultural – e o preço do livro. O preço, na verdade, é um dos fatores, mas ele não pode ser visto como o único fator. Ele não explica tudo – às vezes, inclusive, decorre do resto. E tem que fazer isso tudo ao mesmo tempo. Qualquer resposta simplista dá um resultado simplista também. Tem um monte de coisa acontecendo ao mesmo tempo para gerar um ambiente favorável ao estímulo de leitura cultural. A gente tem que encontrar soluções. Quando fizemos o Plano Nacional do Livro e Leitura, eu pensei muito sobre esse tema e tinha que encontrar uma solução para a riqueza do Brasil. A gente não pode pensar cultura no Brasil como pobreza. O Brasil é um país riquíssimo.
Na tua opinião, como se forma o leitor? Como tu te tornou um leitor?
Eu não sou exemplo porque foi uma coisa muito espontânea. É uma relação pessoal, de curiosidade. Nós temos que ter um trabalho mais sistemático, principalmente dentro da escola. Nos primeiros contatos das crianças com o mundo da educação, o livro tem que ser instrumento de destaque. O Brasil, em relação com a literatura, é quase sempre instrumental. Lê para passar conteúdo, para ampliar repertório, para passar elementos da língua, enquanto a leitura tem que ser vista como um momento de interação simbólica, de relação estética com o que está sendo dito por outros. O Brasil tem muita dificuldade de ter acesso à literatura universal. Não entra na escola Kafka, não entra Dostoiévski, não entra nada que faz a cabeça do leitor no mundo todo. É um recorte instrumental: tu tens que ler isso porque vai cair no vestibular. Mas isso está mudando. Tem que ter uma rede de bibliotecas, isso é uma coisa fundamental também. Na Colômbia e no Chile, eles dizem que querem “biblioteca para competir com shopping-centre”. Então são grandes bibliotecas, bonitas, onde dá para se fazer tudo que se pode fazer em um shopping – só que tudo de graça. E o jovem vai sair de lá com um livro. Se não for no primeiro dia, é no segundo; se não for no segundo, é no terceiro. Pode ser até no terceiro mês, e isso qualquer pesquisa mostra: mesmo aqueles que não tem o menor hábito de ler vão pegar um livro. Pode ser um menino de rua: ele passa pelos video-games, passa pelos filmes, passa pelo computador e já está com o livro. O mundo é muito estimulante fora, então tu tens que fazer uma transição até esse mundo em que tu decodifica letras e faz imagens. Aos poucos vai aproximando.
Dada a importância da escola, a Secretaria de Cultura trabalha junto com a de Educação? Existem projetos conjuntos?
A gente trabalha algumas coisas pontuais que são importantes. Tem o projeto “Autor presente”, por exemplo, que é um projeto que coloca os escritores em contato com os estudantes. É um projeto muito antigo que a gente transformou em algo bem central da política da secretaria. Esse ano temos 140 encontros de escritores, que é um recorde. Nós temos também a formação da perspectiva da leitura cultural junto aos professores, porque sem professor-leitor fica muito difícil gerar um ambiente favorável à leitura. Educação sem cultura é ensino. Cultura é um elemento qualificador de todas outras áreas. Saúde sem cultura é remediação; segurança sem cultura é repressão; desenvolvimento social sem cultura é assistencialismo.Cultura é um elemento crítico, ampliador, que ultrapassa o funcional.
No teu blog, tu comenta muito sobre o mundo da internet. Quais os prós e contras desse amplo e praticamente irrestrito acesso à informação?
Eu comecei a me interessar pelo mundo do livro-leitura-literatura e foquei muito nisso, na organização de bibliotecas, ampliação da rede de bibliotecas, criei os pontos de leitura. Trabalhei nesse campo no país inteiro, que era a perspectiva do Ministério da Cultura. Aí fui convidado a ser secretário de Cultura de Canoas. Ali passei a enxergar outras coisas que, embora tinham sido vivenciadas por mim no Ministério da Cultura, não eram uma prática cotidiana minha. Eu tive que ampliar meu repertório em termos de política cultural, e a área da cultura digital é, no meu entendimento, uma atualização – um F5 – do tema do livro e leitura. Existe a possibilidade muito grande de ampliação dos repertórios via cultura digital de descentralização do monólogo da indústria cultural tradicional para outra perspectiva pessoa-pessoa descentralizada. Sempre gostei muito do copyright não restritivo, da ação cidadã em rede e da cultura colaborativa se estabelecer de uma maneira muito mais efetiva. O Brasil tem uma utilização muito progressista da internet, e tem uma periferia se apropriando disso. Muita gurizada está fazendo o uso cultural da internet, por isso a internet tem a força que tem no Brasil. Assim, tem uma capacidade grande de gerar uma democracia mais real. Cultura digital, democracia real. Há novas possibilidades das pessoas se relacionarem com a comunicação e com os produtos culturais que não seja de uma maneira centralizada. O que temos que conseguir fazer é que não saia da pré-modernidade para a pós-modernidade: o livro é um instrumento fundamental para dar sentido, inclusive, para essa cultura digital. Sem conceituar, sem conseguir ter um instrumental de conceitos, sem conseguir enxergar a potencialidade de autonomia, tu pode virar só um consumidor também. A internet não é boa nem nada, ela é o Exu Monumental. O Exu não é bom nem mau, é só o mensageiro. Podem ser mensagens boas, más, mas o uso disso é a pessoa que tem que fazer... isso me interessa muito, inclusive estou lançando um livro mês que vem sobre o conceito de homem-massa. Qual é a capacidade da cultura digital de gerar um pós-homem-massa? Vai depender muito do uso cultural da internet. Esse tema, eu acho, é o tema do nosso tempo.
E nessa questão de democratização da informação e da cultura: qual a importância que tu vê em meios alternativos e independentes nesse cenário?
A diversidade de olhares precisa da diversidade de meios. A diversidade e democratização na comunicação é um elemento fundamental para a desconstrução de estereótipos. Se tu tem um ou dois meios de comunicação, tu tem também uma ou duas versões da diversidade cultural do Estado, que acaba sendo só uma identidade ou um estereótipo. A ampliação de pontos de vista faz com que tu tenha uma riqueza maior nessa diversidade cultural. Até que ponto tu está preso a uma certa ideia de sociedade? Se tu tem um determinado financiamento, esse financiamento condiciona um pouco – ou muito – a tua ideia de sociedade. Então os meios independentes e alternativos, tendo uma outra fonte de sobrevivência, também tem menos compromisso com certas estruturas que são, no meu entendimento, prejudiciais para o desenvolvimento da sociedade do ponto de vista mais cidadão, mais justo e diversificado. O diverso, do ponto de vista da cultura, é sempre um tom importante para nós. Os meios de comunicação financiados pela lógica do mercado reproduzem a lógica do mercado para continuar vivendo. Os meios independentes cumprem papel arejador, de desconstituir uma visão única sobre sociedade, sobre os fatos. Comunicação é fulcral para a cultura. Se tu é um militante na área da cultura, que é o meu caso, tu tem que ter sempre o tom da diversidade cultural e dos instrumentos que façam essa diversidade cultural aflorar. A cultura digital é importantíssima também por causa disso. É a cultura digital que destampa a diversidade cultural do país. No Brasil isso está acontecendo com muita força.
Como tu vê a ação de coletivos que tem surgido pela cidade? O estado reconhece essa forma de inclusão de cultura?
Eu sou muito fã dessa cultura colaborativa, coletiva, comum. O mercado tem sua forma de se organizar; as empresas, os seus interesses; o estado tem sua forma de organizar seu conjunto de leis e uma atuação em termos de política pública; e tem o comum, que é o colaborativo, é o que se articula, às vezes paralelamente, sem relação com o mercado nem o estado. É o caso de coletivos, que tem uma relação entre cultura e economia solidária muito forte. São esses conceitos: ação cidadã em rede, economia solidária, diversidade cultural e uma comunicação compartilhada, com uma ideia mais ponto a ponto de produção e distribuição de conhecimento. Então os coletivos são fundamentais, eles têm um papel de pressionar tanto o estado quanto o mercado para pautas mais importantes. Vejo muito esse movimento acontecendo: o mercado tendo que ouvir o que os coletivos estão dizendo e tendo que se transformar em alguma coisa um pouco mais justa – e o estado também.
O que tu acha desse processo de fechamento dos bares em Porto Alegre. Não acha que isso afeta a cultura do povo?
O bar é um ponto de cultura e não deveria ser fechado. Lá tu também aprende sobre música, sobre literatura, aprende sobre a convivência em sociedade. Amplia tua dimensão de mundo. Então, onde tem bar vivo, tem a juventude trocando suas referências, intercambiando, colaborando, pensando junto. O ex-ministro da cultura Gilberto Gil achava que bar devia ser ponto de cultura que deveria ser licitado. Concordo integralmente com ele. Esse par entre bar e boêmia é muito necessário, pois a cultura é adquirida por meio dessa relação entre as pessoas.