SIDNEI BRZUSKA
O COLAPSO DO SISTEMA PRISIONAL
entrevista: arthur viana
entrevista originalmente publicada na Revista Bastião, edição #14
Em conversa com Sidinei Brzuska, juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre e Região Metropolitana, O Bastião tenta compreender como a situação dos presídios gaúchos chegou ao ponto de primitivismo que se encontra atualmente.
A incapacidade dos governos e da sociedade de resolverem suas mazelas fica escancarada quando analisamos o grau de desumanidade que se encontram os presídios hoje em dia. É constrangedora a forma como esses seres humanos são tratados – às vezes pior que lixo. Ainda assim, nada é feito e a situação é a mesma há décadas. O preconceito cresce e afasta a sociedade da raiz do problema. Enquanto isso, dentro dos muros dos presídios, a ordem é subvertida e a lei vem debaixo. A ausência do Estado fez com que o mundo das penitenciárias se estabelecesse sob seus próprios regulamentos: manda quem pode e obedece quem tem juízo. “Hoje, há uma administração compartilhada: os presos controlam algumas coisas e o Estado controla outras.” A afirmação é de Sidinei Brzuska, juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre e Região Metropolitana. Ele circula com facilidade por lugares onde seus semelhantes não ousam entrar. Negocia com presos, media conversas, entra e sai livremente dos presídios. Conquistou o respeito de ambos os lados. Graças à sua ação, a falência do sistema prisional extrapola pátios e galerias onde se amontoam condenados e a discussão invade as ruas. Aos poucos, a sociedade abre os olhos: “Enquanto nós não assimilarmos que os presos são problemas nosso, gerado por nós e que nós temos que administrar, nada vai mudar”. Lugares onde o ser humano vale tanto quanto lixo não têm o poder de reabilitar uma alma.
Existe alguma chance de o preso ser reabilitado no sistema prisional de hoje?
É muito difícil. Eu não posso alegar que a reabilitação seja algo impossível, mas ela ocorre por exceção e muito mais por esforço pessoal do preso. Pelo sistema em si, não. O sistema não favorece a ressocialização. Mas não é impossível: nós temos exemplos de pessoas que conseguiram sair. Mas, como eu disse, mais por um esforço pessoal, uma força de vontade muito grande, pelo apoio da família e por alguém que assessore essa pessoa.
Com essa dificuldade de reabilitação, aumentam as chances de reincidência no crime?
Nós temos que rediscutir o sistema prisional e teremos, talvez, que reconstruir esse sistema. Isso passa por uma transformação radical. Para começar, o regime fechado: as casas prisionais teriam que ser capazes de conter a criminalidade. O Estado teria que ter controle sobre o que acontece nas galerias, nos pátios etc. Essas casas prisionais ficariam livres de celulares, de drogas, teriam regras bem estabelecidas, com disciplina. Ou seja: contenção. Depois, em um segundo momento, nós precisamos ter um investimento fortíssimo no regime semiaberto – que hoje não há, é um regime relegado. Hoje, é simplesmente uma válvula de escape do fechado: ele serve para as pessoas fugirem. Eles – semiaberto e fechado – teriam que funcionar em casas pequenas, para melhor controle. As prisões seriam pulverizadas, independentes e próximas do local onde as pessoas têm seus vínculos. Durante a fase da contenção, no fechado, a pessoa ficaria livre de telefones, drogas, facções. Ali, ela teria que ser preparada, mental e profissionalmente, para chegar ao semiaberto com uma melhor condição profissional. Isso teria que seguir no semiaberto, com uma condição de trabalho, algo que lhe rendesse uma remuneração. Isso nós não temos hoje. Nós não temos prédios, estrutura funcional, material... nós não temos nada. O sistema deveria ser reconstruído.
Como se chegou a tamanho descontrole sobre o que entra ou sai dos presídios?
Esse descontrole começou porque o Estado, sem a capacidade de manter os presídios – estrutura defasada, falta de recursos – começou a fazer concessões aos presos. Nessas concessões, o Estado foi empregando a administração dos presos. Hoje, há uma administração compartilhada: os presos controlam algumas coisas e o Estado controla outras, e isso gera o descontrole. Para pegar o exemplo do Presídio Central: em menos de dois anos, foram 2.800 telefones celulares apreendidos; em dois anos e meio, foram apreendidas 47 armas de fogo industriais e 50 quilos de droga. Isso se encaixa nesse contexto de você ir entregando o presídio para os presos. Tu faz uma concessão: não consegue conter o preso na cela, então abre a cela, eles ficam na galeria; não consegue controlar o pátio, então entrega o pátio para os presos; não consegue controlar a alimentação, entrega a alimentação; não consegue controlar a manutenção da unidade, ou seja, reformas hidráulicas, elétricas etc., entrega isso para os presos. Chega um ponto em que o funcionário passa simplesmente a controlar quem entra e quem sai.
Então existe conhecimento, por quem trabalha no presídio, de que se tem acesso a todos esses aparelhos e armas? O uso é livre?
Não é que seja livre, mas todo mundo sabe. A nossa situação aqui está tão deteriorada que os nossos presos não sabem mais o que é cadeia. Eles acham que prisão é isso, que a família tem que levar colchão, carne, creme dental, roupa. É a família que sustenta o preso, e acham que isso é normal. É cultural. O preso não sabe o que é prisão, o funcionário também não. No semiaberto, o preso não se sente preso, e nem o servidor o considera preso; ele acha que o semiaberto é isso mesmo. A reforma que o sistema tem que ter, antes de mais nada, é uma reforma mental, cultural. Nós temos que resgatar o sistema prisional. Não vejo isso possível de ser feito nessa geração. Tem que gastar muito dinheiro para reverter isso aí. Nós tivemos um retrocesso gigantesco no sentido do controle que se tinha. O que mantém o regime fechado em pé é a chance de o preso fugir do semiaberto. Nós temos, aqui na Região Metropolitana, mais ou menos 13 mil fugas por ano.
Dentro desse quadro, é correto afirmar que a superlotação é o principal problema do sistema prisional?
A superlotação é causadora de vários outros problemas, mas não é o único. Nós temos a PASC (Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas), que não tem superlotação, mas, no entanto, os presos não trabalham, não estudam, têm acesso às drogas e ao telefone celular. Ela não tem superlotação, mas nós temos uma cultura, dentro do sistema, e ela acontece também na PASC, na qual a família provê o preso. O Estado não dá para o preso uma colher ou uma escova de dente. Não dá nem creme dental. Quem é que dá isso para ele? A família. E se a família não dá, quem vai dar? Outro preso. E ele vai se tornar refém.
Acaba surgindo uma espécie de mercado dentro dos presídios.
O Central tem uma cantina regular, contratada licitamente. Tá na lei. Essa cantina deveria ser para o preso poder comprar aquilo que o Estado não dá: uma bolacha diferente, um picolé, um refrigerante... mas o que se vende na cantina do Central? Arroz, feijão, sabão. Itens básicos. Essa cantina paga algo entre R$ 40 mil e R$ 50 mil por mês de aluguel. Aí tu imagina o quanto ela vende.
E os presos pagam com dinheiro?
Com dinheiro. É a história da concessão: o Estado permite que entre dinheiro. Porque se ele não permitisse, como o preso iria comprar o que o Estado não dá? Como ele iria comprar papel higiênico? Como ele compraria coisas básicas, como azeite? Cada visita no Central pode levar 300 gramas de carne – o Central recebe, por ano, 250 mil visitantes.
Qual a capacidade e qual a população carcerária no Estado?
Esse é um dado muito falacioso. O Estado teria algo como 18 mil vagas para 30 mil presos. Mas isso é errado porque as vagas que nós temos são muito ruins. Se você for olhar a vaga certinha, que obedece às regras, como a dos seis metros quadrados, essas vagas praticamente não existem. No último levantamento que eu fiz aqui na Região Metropolitana, há dois anos, o número de presos que estavam em vagas de acordo com a lei era aproximadamente de 2,5%. Nossas vagas são péssimas. Tu vai considerar o Central: tem duas mil vagas para quatro mil e poucos presos. Mas, na verdade, essas duas mil vagas estão todas destruídas. Nosso problema é bem mais grave do que os números que se veem por aí.
Existe um nível mínimo de condição de vida lá dentro?
Não. Nem quanto à saúde. Só para tu ter uma ideia: em levantamento recente, que analisa os presos que morreram até a semana passada no Hospital Vila Nova, 37% morreram antes dos 30 anos e 48% morreram antes de cinco dias de internação. O que isso quer dizer? O sujeito é levado para o hospital para morrer. Está havendo uma falha. Eu tenho um mapeamento maior que mostra que mais ou menos 75% morrem de doença respiratória, 78% antes dos 50 anos. Há um levantamento que nós estamos fazendo agora – então isso não está bem confirmado –, mas a expectativa é que 30% da massa carcerária tenha hepatite C. O grau na população não presa é de 2%. O tratamento da hepatite custa aproximadamente R$ 30 mil por pessoa. Aí tu faz a conta.
Usando o exemplo do Central, que parece ser o presídio em situação mais catastrófica: como é a divisão de alas? Existem facções e brigas por poder?
Existem regras dentro da cadeia, que foram estabelecidas por acordos, por tradição. Essas regras são cumpridas, e são elas que mantêm o sistema. Por exemplo: quem comete crime sexual ou contra a criança é considerado “preso seguro”, não entra em galerias. A pessoa que já trabalhou também não entra mais em galerias – tem muitos presos que não querem trabalhar porque depois não têm onde viver no sistema, que não aceita o preso que trabalha. Esses presos representam 10% da massa carcerária. Não entram em galerias, ficam separados. Depois, nós tínhamos as facções ideológicas, que com o passar do tempo foram perdendo essas ideologias. Ainda mantém um pouco. O resto se pulverizou na questão do tráfico. Hoje, basicamente, nossas facções são de tráfico, não mais com ideologia. O esquema é o lucro. Daí cada um tenta manter os seus espaços internos, porque isso representa mais dinheiro para o tráfico. Há duas semanas, por exemplo, uns presos da PEC (Penitenciária Estadual do Jacuí) fizeram um buraco para fugir, mas outros presos foram lá e taparam o buraco, porque isso é contra o sistema. A polícia pegou esses presos e eles foram transferidos. Quando chegaram à outra prisão, foram vaiados pela massa carcerária, porque “ratearam” e perderam o espaço que havia sido conquistado.
Em agosto, tu comentou que o número limite de presos no Central deveria ser de 4.650 pessoas. Por que esse número, se ele está bem além da capacidade máxima do presídio?
O Central tem um grave problema hidráulico, cloacal. O sujeito defeca lá em cima e aquelas fezes vão caindo, in natura, até o pátio. Aí eu estabeleci que os pavilhões não pudessem ter mais que mil presos (os pavilhões grandes). Para fazer com que os pavilhões chegassem a mil presos, o presídio teria que estar em 4.650. Então é esse o número. Hoje, por força de outras interdições, ele está com menos que isso, aproximadamente 4.200 presos.
Tu acha que a solução para a crise do sistema prisional depende da classe política?
Acho que não, depende mais da questão popular. A classe política é um reflexo da questão popular. Falta conscientização. Não temos maturidade social pra debater certas coisas – pena de morte, liberação de drogas, aborto – e não conseguimos debater o sistema prisional. É um atraso cultural. Um caso que dou do nosso atraso cultural é o exemplo da Noruega, daquele rapaz que matou dezenas de pessoas. Qual foi o pensamento do povo? “Onde nós falhamos?” Se fosse aqui no Brasil, nos estaríamos debatendo a pena de morte. Então vai demorar um pouquinho. Nós não consideramos um problema nosso: consideramos o preso um problema do Estado. Enquanto nós não assimilarmos que eles são problemas nosso, gerado por nós e que nós temos que administrar, isso não vai mudar.
Há muito preconceito por parte da sociedade?
O preconceito já foi pior. O problema é que o sujeito não tem qualificação nenhuma. Ele fica entre os outros presos e não evolui, não se qualifica, sai de lá tatuado, viciado, com uma gíria toda de prisão, sem nenhum documento e só com a roupa do corpo – que é uma regra do sistema fechado: tudo que foi levado para o preso enquanto ele estava na cadeia fica na galeria. Por que o PCC se fortaleceu em São Paulo? O PCC faz aquilo que o Estado não faz. Oferece ao preso alimentação, transporte, mantém a família em contato, paga advogado para quem não tem. Essas facções só existem no vácuo do Estado. Hoje, aqui, se nós retirarmos facções do sistema, o sistema cai. Os presídios funcionam em cima da mão de obra do preso, e quem controla a mão de obra dos presos são as facções. Sem elas, não sai nem as audiências no Foro. Quem retira um preso da galeria para ir para a audiência? É outro preso.
O Estado não tem condições?
O Estado não tem condições de entrar em uma galeria do Central e retirar um preso. Até pode fazer isso, mas vai ter que parar toda a cidade, mobilizar todos os brigadianos e entrar lá para tirar um prisioneiro. Quem retira o preso é um preso; quem abre a porta é um preso; quem faz a comida é um preso; quem faz a limpeza é um preso; quem troca a lâmpada é um preso. Mas vamos ser claros: o problema da Previdência Social não são os aposentados; o problema da educação não são os alunos; o problema da saúde não são os doentes; e o problema do sistema prisional não são os presos. Eles são fruto disso aí.
O que tu acha de medidas punitivas mais extremas, como a pena de morte?
Se tu pesquisares, vai ver que quem morre vítima de homicídio é preso. Mais ou menos 45% das vítimas são pessoas que recém saíram do sistema prisional. Esse número pode chegar a 80% se considerar pessoas que tiveram vínculo com o sistema. Por isso os homicídios não impactam a classe média. No Brasil, temos muitas penas de morte, mas aquela pena “não-oficial”. Todas as semanas, nós temos pessoas sendo assassinadas, e o Estado não se preocupando com isso. Estive conversando com um xerife da Califórnia. Lá eles têm pena de morte. Perguntei: “Qual foi o último que vocês mataram?”. E ele me respondeu que não lembrava. Lá, o policial dá um tiro e fica afastado sete dias, no mínimo. Entrega a arma e é apurado se aquele tiro devia ou não ter sido dado. Quem investiga isso não é a própria corporação. Aqui no Brasil, é comum a polícia matar, colocar como legítima defesa e o caso sequer ser investigado. Isso é uma pena de morte também. Mas quem acaba julgando a pena de morte no Brasil é quem matou. Temos que deixar de ser hipócritas. As pessoas só se preocupam com o tráfico se tiverem um viciado na família. Não vendendo para os meus filhos, está bom. Entendeu? O pessoal que controla o crime já tem essa noção de que o tráfico tem que sobreviver do tráfico. O tráfico não tem que investir no patrimônio, isso incomoda a classe média e, se incomodar a classe média, os caras vem com jornal e vão querer nos incomodar. Então em várias áreas, o pessoal proíbe furto, roubo, faz o tráfico girar em cima do tráfico. Se tiver que matar alguém nesse circuito, ninguém se importa. O que não pode é roubar um carro e machucar a pessoa do carro. Aí que dá problema. Se matar o sujeito que não pagou a conta, o viciado, isso tudo é acerto de contas dos presos, queima de arquivo. Essa é uma das razões pela qual não tem motim. Esse sistema dá lucro para quem o controla.
É possível, nesse cenário, trazer mudanças com a participação dos presos?
É possível, mas tem que ter investimento pesado. O Brasil já tem alguns exemplos disso. Começou em São Paulo, que não seguiu. Minas Gerais copiou o exemplo, que é o sistema da APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados). O presídio é controlado pelo preso, assim como é aqui. Só que aqui é controlado pelo mau, lá pelo bom. O sistema APAC se autocontrola e tem algumas regras bem simples: o preso assina que quer ir para a APAC e, assim, se sujeita às regras. Lá não tem drogas, não tem telefones, os presos vão para audiências sozinhos, sem escolta, e voltam sozinhos. Não que isso seja uma solução, mas é uma alternativa. A APAC é para o preso que não quer mais conviver com o crime. Tem muita gente que não quer sair do crime, então a APAC não serve para esse tipo de gente.
Tu acha que a privatização é uma das soluções possíveis?
Sou totalmente favorável à terceirização dos serviços penitenciários. Isso quer dizer o seguinte: alimentação dos presos? Entrega para a instituição privada. Ela que vai comprar o arroz, o leite. Ela que, se quiser, vai contratar um preso. Vai pagar os encargos sociais, FGTS, eles vão trabalhar com carteira assinada dentro do presídio. O preso vai se profissionalizar no ramo. Há empresas terceirizadas que limpam todos os prédios do sistema público. Então terceiriza no sistema prisional também. Essa empresa vai contratar gente, vai remunerar, aí já começa, dentro do sistema prisional, a gerar empregos. O Estado vai encolhendo. Ele fica cuidando da questão da segurança. Depois privatiza 10% do sistema. Privatiza mesmo, para ter o referencial, para ver como é. Um fechado e um semiaberto. Deixa a sociedade julgar quem é melhor. Tu vai gerar uma competição. Isso vai gerar, no Estado, uma obrigação de pelo menos tentar fazer alguma coisa, o que hoje não existe. Na educação, você tem um comparativo: tem a escola pública e a escola privada. Não é do Estado a obrigação da educação? A questão da segurança é obrigação do Estado também. Todos os prédios públicos tem segurança privada. Por que preso não pode ter? Privatiza 10%. Sou favorável. Não tenho nenhum problema quanto a isso.