POR TRÁS
DE CADA PLACA
Tu provavelmente já viu esse indiozinho pelas placas de Porto Alegre. Se ainda não viu, passará a perceber a partir de agora. Ele vai chamar a atenção e os teus olhos serão atraídos por esse e outros stickers. O “indiozinho” referido é Xadalu, o mais popular dos adesivos colados em Porto Alegre. Mas ele está longe de ser o único. Xadalu é influenciado e vira influência para muitos outros artistas de rua.
Madrugada, o Centro de Porto Alegre é uma mistura de vários mundos que não se mostram ao mormaço da luz do dia, quando os diálogos se abafam em murmurinhos. Descemos a ladeira em direção ao Mercado, nosso ponto de partida. Quando estava desempregado, Dione, mais conhecido como Xadalu, ia para a rua quase todos os dias. Diz que esse negócio de colagem vicia, e tragamos na mesma hora a empolgação que dele exala.
Ao mesmo tempo em que ele nos conta que o mais encantador de sair para as intervenções é imergir nas histórias das putas, dos bêbados, dos moradores de rua, passa ao nosso lado uma mulher que reclama de duas jovens vestidas em roupas minúsculas:
- Essas aí vem pra cá só pra roubar o marido das outras. Se veste de safada, mas na hora de foder elas nem sabe
No meio desse ambiente bruto e fascinante, vagueiam alguns subversivos, ou mesmo quem só quer curtir sua arte tomando a cidade. E, para tomar Porto Alegre, o Centro é o destino preferido. É lá que mais pessoas circulam e, consequentemente, o trabalho do artista fica mais exposto, explica Dione. Placa atrás de placa, lixeira por lixeira, ele e seu amigo 3D vão deixando sua marca. Não há um plano, um roteiro a ser seguido. Os destinos vão sendo traçados na hora e levam para os mais diversos cantos da cidade. Nas noites de maior empolgação, por volta de 400 stickers são colados em caminhadas que vão até as sete horas da manhã.
Xadalu aposta em mensagens políticas, alertando para uma injustiça social que teve origem na colonização da América. Se os índios foram sumindo, dizimados no curso da história, a arte que hoje estampam muitas das placas, lixeiras e paredes de Porto Alegre, buscam relembrar que eles ainda existem.
As contradições de uma pátria que se orgulha em ostentar o título de “tupiniquim”, mas que, cada vez mais, deixa de lado a cultura indígena são expostas a cada palmada que Xadalu dá contra uma placa, fixando mais um adesivo diante dos olhos vermelhos do mundo.
Dione não busca no seu trabalho o reconhecimento de sua marca. “Eu nunca apareci em foto nenhuma”, comenta. Seu objetivo é simplesmente o de conscientizar as pessoas. Descendente de índios, Xadalu conta que já teve contato com povos indígenas, porém sem nunca se identificar como defensor da causa. “Um índio uma vez me falou que guardava todo o ódio no coração. O que ele mais lamentava não era o fato de estar vivendo na rua, mas de depender da esmola do povo branco.” Dione tem dois trabalhos com lambe-lambes (pôsteres colados nas paredes) que também pregam mensagens de cunho social. Um deles poetiza “A espada de Cabral cortou nossas raízes” e o outro questiona “Ordem e progresso?”. Xadalu conta que não se apega tanto à técnica, tentando exprimir em seu trabalho todo o sentimento que tem pela cultura indígena. Ele não nega, porém, que na confecção de sua arte preza por alguns critérios básicos respeitados por grande parte dos artistas: “quando faço meu trabalho, eu também levo em consideração teorias como a pregnância da forma e a gestalt.”
Entre os pioneiros dos stickers em Porto Alegre, Celos pensa diferente de seu colega e amigo Dione. Enquanto um quer passar uma mensagem, o outro só quer ver seu personagem na rua. Se Xadalu busca se aprofundar na área gráfica, Celos vai na contramão das tecnologias. “Na minha arte, eu busco algo bruto. Eu quero voltar a tal ponto que possa tirar o corante da árvore e pintar com isso.”
Celos também acredita que a subversão é a essência da prática da arte de rua: “eu acho que o espírito da coisa é o ilegal.” Apesar da transgressão, nem Celos nem Xadalu vêem seus trabalho como vandalismo. Não são raros os casos em que as autoridades abordam os dois. Porém, com uma boa conversa, eles geralmente compreendem a situação. “Já aconteceu de policial conhecer o indiozinho e pedir adesivo pra levar para a filha”, conta Xadalu.
Os trabalhos de Dione, Celos, 3D e outros artistas ganham tamanho reconhecimento por se tratarem de uma espécie de comunicação em massa. A repetição de placa em placa da mesma imagem fixa a marca na cabeça das milhares de pessoas que a veem. É por esse motivo que, em épocas de eleição, muitos políticos chegam a procurá-los para vincular às campanhas o sucesso dos adesivos já espalhados por toda a cidade. Completamente avessos à politicagem, eles nunca aceitaram as propostas. Preferiram tocar seu trabalho sozinhos, mesmo com as dificuldades de se sustentar como artistas de rua sem nenhum retorno financeiro. Durante nossa volta pelo Centro de Porto Alegre, Xadalu nos aponta o portão colorido de uma loja. “Esse grafite aí os caras me pagaram pra fazer. Foi a primeira vez que recebi pra fazer isso. E a última. Não gosto de arte paga.”
Para manter a produção de mais de 10 mil indiozinhos a cada tiragem, Dione conta com a doação de material por parte de empresas que admiram o seu trabalho. Mesmo assim, os gastos com a tinta, que chegam a R$ 40,00 em cada um desses processos, ainda precisam ser bancados por ele próprio. Os adesivos, lambe-lambes e camisetas são produzidos em uma humilde serigrafia nos fundos de sua casa.
Trabalhar só com arte de rua ainda é praticamente impossível em Porto Alegre. Celos lamenta não poder viver disso. “Já perdi muitos projetos e viagens pagos pela prefeitura porque tinha que trabalhar. Não que eu fosse ganhar grana com isso, mas perdi a oportunidade de levar a arte de rua daqui pra lá.” Em São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, a cena é muito mais forte do que em Porto Alegre: “sou mais reconhecido lá do que aqui”, relata Dione.
O reconhecimento, contudo, não é o objetivo final de Xadalu. Muito além de seus planos profissionais na carreira de designer ou de seu trabalho como artista, ele segue caminhando pelas madrugadas de Porto Alegre para levar adiante a mensagem de preservação da cultura indígena.
No Velho Mundo
Das galerias para as ruas. Essa foi a opção do artista francês Clet Abraham. Na Itália desde 1990, Clet já expôs em Roma, Paris, Melbourne e outros grandes centros culturais do mundo. Porém, ele ainda percebia a necessidade de dar mais vida ao seu já amadurecido trabalho. E, segundo Clet, o único modo de fazer isso verdadeira e livremente é por meio da arte de rua: “esse é o único modo para se poder existir de verdade.” Há pouco mais de um ano, ele vem fazendo intervenções em Florença, Londres, Paris e pelo resto da Europa. Stickers se fundem às placas criando novos significados. São diversas mensagens pensadas sempre em cima do tema da própria sinalização: “se há uma placa que fala sobre proibição, eu trabalho sobre a ideia da proibição; em outra de estrada sem saída, eu falo de religião, do que há depois da morte, depois do fim.” Dessa forma, uma bifurcação se torna um diabo, uma rua vira um crucifixo e uma seta, um anjo. A preferência pela temática da religião passa diretamente pela cultura dos italianos.
A arte de rua no Brasil e na Europa guarda algumas semelhanças, como, por exemplo, a relação com as autoridades. “Tem de tudo. Em algumas cidades me acolhem muito bem e em outras me aplicam multas muitas vezes bastante altas”, conta o francês.
Clet Abraham explora a arte nas placas por vê-las como uma comunicação universal e como “um símbolo da autoridade um pouco estúpida, humilhante”. Dessa forma, ele acredita poder falar com todo mundo e dar dignidade a todos. “A arte pela arte para mim não é interessante. A arte deve ser útil, deve ser um protesto, uma ajuda, qualquer coisa que sirva ao presente e ao maior número de pessoas possível.” Por meio dos stickers, Clet se sente em diálogo com o mundo e vê nisso a beleza de seu trabalho: “é belo comunicar”.

reportagem: bebeth soares, douglas freitas, gabriel rizzo hoewell, luciano viegas, ramiro simch
texto: gabriel rizzo hoewell, luciano viegas | fotos: gabriel oro
reportagem originalmente publicada na Revista Bastião, edição #2

