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AS VIDAS MUDADAS QUE

A COPA DEIXA PARA TRÁS

reportagem: débora backes | fotos: débora backes

Em três cantos de Porto Alegre, famílias foram tiradas de suas casas devido às obras para receber o Mundial de Futebol. Conheça a história de quem ainda luta pelo direito de uma moradia digna.

A casa de Seu Zé não é tão longe da minha. Bastou entrar no Cruzeiro do Sul, a linha 282 que passa pela Avenida Azenha em direção ao bairro. Não precisei de 15 minutos para chegar ao ponto indicado por Seu Zé pelo telefone, quando falamos alguns dias antes do encontro. “Desce na frente do Supermercado Pezzi e segue em frente. Qualquer coisa me liga se te perder”. Era bem provável que eu me perdesse, já que apesar da relativa proximidade de nossos bairros, nunca havia me aventurado pelos lados da Cruzeiro. Já havia passado por ali de ônibus e prestado atenção nas pessoas que circulavam nas ruas, mas só dessa vez me atrevi a descer. Dessa vez era diferente: eu queria ouvir a história dessas pessoas que ficavam para trás quando o motorista seguia viagem. O que me levara até ali é algo que realmente merecia minha atenção. Não só a minha, mas de muitos outros brasileiros preocupados com os impactos sociais da Copa do Mundo de 2014.

 

José Raimundo Fachel Araújo, mais conhecido como Seu Zé, mora na Avenida Cruzeiro do Sul, dentro da chamada Vila Cruzeiro, uma das comunidades que fazem parte da Tronco. A localização de sua casa nunca foi um problema nos 40 anos que vive ali, mas desde a nomeação do Brasil como sede da Copa de 2014 seu próprio endereço se tornou motivo de grande preocupação. Sua casa está entre as marcadas para serem retiradas devido às obras de duplicação da Avenida Tronco que, segundo a Secretaria Municipal de Gestão de Porto Alegre, deverão custar R$ 156 Milhões. Seu Zé está entre as 1.525 famílias cadastradas desde 2011 no programa de reassentamento do Departamento Municipal de Habitação de Porto Alegre (DEMHAB). Dessas 645 já foram removidas para que os primeiros trechos da obra pudessem tomar lugar - 540 receberam o bônus moradia de R$ 52.340,00 para comprar uma casa ou apartamento e outras 105 recebem mensalmente o aluguel social de R$ 500.

 

Sobre o futuro das 880 famílias restantes muito já foi definido, mas pouco se sabe sobre os próximos passos. Os próprios moradores e ativistas do Comitê Popular da Copa mapearam 14 terrenos na região que poderiam ser usados para a construção do conjunto habitacional, 8 deles foram desapropriados para isso. Enquanto as obras na Avenida Tronco avançam, nenhum tijolo foi colocado para erguer as novas casas. E as famílias ainda vivem na insegurança, sentimento que fez com que muitos optassem logo pelo aluguel social ou bônus moradia.   

 

Mas o medo virou indignação. Os moradores restantes na Tronco cansaram de esperar e resolveram tomar o destino nas próprias mãos. Seu Zé poderia estar aproveitando o descanso da aposentadoria, mas decidiu trocá-lo pela luta ativa por seus direitos. Hoje como integrante do Comitê Popular da Copa de Porto Alegre e da Articulação Nacional dos Comitês, ele faz questão de participar de todas ações. Ocupações, protestos e encontros nacionais já estão no currículo do ativista. Pelas suas mãos também passaram os cartazes que hoje ornamentam os escombros que um dia foram casas. Em meio as ruas da Vila Cruzeiro, é possível encontrar papeis com a simples frase "Chave por chave". Seu Zé explica: “A comunidade decidiu ficar na região. Decidimos que só saíremos quando recebermos a chave da nova casa que nos prometerem aqui no bairro”.

 

Com o seu lema, o movimento já atingiu uma importante conquista: colaborar para o atraso das obras na Avenida Tronco que, por isso, foi retirada da Matriz de Responsabilidades da Copa. “Essa região toda foi construída por conquistas dos moradores, então não vejo benefício nenhum em sair. A gente nunca foi contra a Copa, nem contra a Avenida, mas os direitos das pessoas precisam ser respeitados”, enfatiza o ativista e morador da Cruzeiro.

 

Dados da ONG alemã KoBra (Kooperation Brasilien) revelam que devido às obras para receber a Copa do Mundo de 2014, esse direito tão básico de morar se tornou uma preocupação para 170 mil brasileiros ameaçados de serem reassentados. O problema, entretanto, não está somente na retirada de pessoas de suas próprias casas, mas nas consequências do ato a longo prazo. A arquiteta e ativista do Comitê Popular da Copa de Porto Alegre e integrante da Articulação Nacional dos Comitês, Claudia Fávaro, observa que graças ao baixo valor do bônus moradia e do aluguel social oferecidos, muitas famílias se viram obrigadas a buscar casas fora de Porto Alegre e até mesmo no litoral. “O problema é que essas famílias não estão adaptadas a ter sustento e renda através da pesca, por exemplo. Então, elas vão viver de pequenos recursos e vão gerar grandes bolsões de miséria. O Comitê se colocou contra essas políticas e por isso as obras na Tronco não andaram”, explica. A esperança é que, como a Avenida não precisa ficar pronta às pressas, as famílias ganhem mais tempo para dialogar com a Prefeitura.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

não encontrar outra morada. Em 2012, o grupo se separou: alguns foram para Barros Cassal e outros para a esquina da Avenida Mauá com a Caldas Júnior, a Ocupação Saraí que está ameaçada por uma ordem de reintegração de posse.

 

Ao chegar no número 161 da Barros Cassal tive certeza de que estava no lugar certo. Na entrada do prédio ainda em construção, o grupo anuncia suas causas pela sigla MNLM, Movimento Nacional de Luta pela Moradia. A ocupação do prédio pela Cooperativa de Trabalho e Habitação 20 de Novembro não é somente uma busca por um lar, mas uma forma de reinvindicar seus direitos. O direito de morar. Ao subir as escadas de cimento, encontro outras manifestações dos objetivos do grupo: "Só a luta muda a vida", a frase está entre mãos de crianças marcadas com tinta azul e rosa. A parede sóbria de cor cinza ganhou algo de especial e digno da atenção dos visitantes. Na casa de Ni e sua família, mais dizeres de protesto: "Quando morar é um privilégio, ocupar é um direito" decora a geladeira branca. É essa frase que justifica suas ações por uma moradia no Centro de Porto Alegre.

 

A caminhada dos 20 de Novembro já é longa. "O nosso plano nunca foi ficar ao lado do Beira Rio. A gente sempre quis vir para algum prédio no centro. Em 2006 entregamos o projeto arquitetônico do prédio da Barros Cassal para a Prefeitura. Ele demorou 5 anos para ser aprovado e quando nos mudamos pra cá, as obras ainda não tinham começado", conta a ativista Ni. Para Ezequiel Morais, o atraso, assim como a mudança feita às pressas, foi uma forma que o Governo Municipal encontrou para enfraquecer o movimento. Devido à ida da Padre Cacique para o Centro, as frentes de trabalho da Cooperativa, como produção de serigrafia, design gráfico, costura e reciclagem precisam ser reorganizadas. A esperança é de que a Caixa Ecônomica Federal aprove a liberação de recursos para que o grupo possa reformar o prédio e fazer dele um centro de moradia e luta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os dois lados da moeda chamada "reassentamento"

Da Barros Cassal, onde se encontra a Cooperativa 20 de Novembro, até o Rubem Berta, são cerca de 50 minutos com o ônibus. Ali, perto da Avenida Bernardino Silveira Amorim, há outros que ainda tentam se acostumar com a nova vida em um conjunto habitacional. São os antigos "diqueiros" que foram obrigados a deixar suas casas ao lado do Aeroporto Salgado Filho devido à ampliação da pista prevista para metade de 2014. De acordo com a Assessoria da Infraero, a obra ainda está em fase de aprovação interna e, por isso, também foi retirada da Matriz de Responsabilidades da Copa. Mesmo com tantas incerteza em relação ao projeto, a Vila Dique acabou perdendo seus moradores. "Você tem que contar para as pessoas a sacanagem que eles fizeram com a gente", pede Maria Edith Figueiredo Alves, ex-moradora da Dique e atual moradora do Conjunto Habitacional Porto Novo. Assim como ela, muitos estão infelizes por deixarem suas casas e até sua forma de sustento para trás. Almerinda Argenta Gambin, mais conhecida como Miranda, não exita em dizer que quase chorou ao conhecer a nova moradia Depois de 30 anos em uma casa espaçosa com jardim, onde tinha sua pequena horta, a técnica em enfermagem e o marido foram realocados para uma casa de 35m² em meio a vizinhos que pouco conhecem. Além disso, a casa já veio com alguns problemas. "Quando chegamos não tinha água, eletricidade e o chão era de cimento. Tivemos que fazer algumas reformas por conta própria para poder viver aqui", relembra.

 

Das 1.476 famílias cadastradas no DEMHAB, 922 já receberam suas casas. Alguns até se alegram pela mudança, especialmente os adolescentes que não pensam duas vezes antes de dizer "aqui é bem melhor". Miranda admite que em termos de infraestrutura, não há comparação. A nova creche e o novo Posto de Saúde deixam qualquer visitante impressionado por seu tamanho e organização. Além disso, segundo dados da ONG Trata Brasil, repassados pelo DEMHAB, as internações infantis por doenças respiratórios diminuiram cerca de 80%. A umidade no local e as péssimas condições sanitárias provocavam problemas sérios de saúde principalmente nas crianças.

 

Depois de três anos trabalhando na preservação da história da Dique, com o projeto Memórias da Dique, a doutora em Educação e Professora de História da UFRGS, Carmen Zeli de Vargas Gil, acredita que as diferentes opiniões sobre a remoção se deve às diferentes realidades vividas pelas famílias dentro da Vila. Para ela, há uma diversidade muito grande nessas comunidades que não foi respeitada durante o reassentamento. "Esse processo que vem sendo prometido há anos só aconteceu por causa da Copa. E ele só acontece dessa forma porque acontece nesse momento que a cidade está sendo apropriada de uma forma mercadológica. A moradia não é mais direito, é mercadoria", e acrescenta ainda, "Há um descaso histórico com a vida do homem simples".

 

O direito de estragar a festa

Antonio Lassance, cientista político do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), se coloca como favorável à Copa de 2014 e enxerga nela muitas chances positivas para o Brasil. Mas reconhece que direitos básicos de moradores de diversas cidades vêm sendo desrespeitados. "Pelo que ouvi em alguns debates com pessoas de Porto Alegre, que tem uma tradição de cidadania democrática e participação em grau elevado, muitos dos atrasos de obras se devem justamente ao fato de que os moradores se organizaram e fizeram a Prefeitura rever projetos. Isso tudo é bom, mas discutir as obras não é inviabilizar as obras. As capitais não podem mais se dar esse luxo", afirma.

 

Lassance não exita em discordar de muitos argumentos da "turma do #NãoVaiTerCopa". Quanto aos gastos com estádios para o Mundial, o cientista político afirma que estes serão somente 30% dos R$ 25,6 bilhões gastos, o resto será em obras de mobilidade urbana, aeroportos e segurança pública, o que ficará para as cidades após o evento. "Além disso, a maior parte do recurso liberado para a construção de estádios foi feita na forma de empréstimos do BNDES. Ou seja, é dinheiro que tem que ser devolvido para os cofres públicos", argumenta. Ele enxerga os protestos como algo positivo, principalmente por questionar os gastos e a atuação da Fifa, porém pede responsabilidade de todos brasileiros para que tudo funcione como o planejado: "Para o Brasil, a Copa é uma oportunidade imensa. O mundo vai poder conhecer melhor o País. Por isso, temos que cobrar responsabilidade, mas temos também que ser responsáveis. Todo mundo tem o direito de reclamar, mas ninguém tem o direito de estragar a festa", pede se referindo principalmente aos atos considerados violentos por parte de demonstrantes.

 

Entretanto, para quem precisou deixar casa, lembranças e uma vida para trás, o "direito de estragar a festa" parece muito válido. Durante o Campeonato de Futebol em Porto Alegre, os moradores da Tronco, da Dique e das Ocupações 20 de Novembro e Saraí pretendem trocar os jogos da Seleção por protestos. Como já dizem as parades de cimento na Barros Cassal "Só a luta muda a vida". Sendo assim, não há outro jeito se não ir às ruas.

E na casa nova, a luta continua

Enquanto alguns ainda fazem o possível para permanecer, outros não tiveram muita escolha e com os próprios esforços encontraram um novo lar. Ceniriani, Ezequiel e a filha Dandara moravam ao lado do estádio Beira Rio, escolhido pela Fifa para receber os jogos do Mundial. Como eles, outras famílias que compõe a Ocupação 20 de Novembro foram obrigadas a se retirar quando as máquinas começaram a avançar. Ceniriani Vargas da Silva, mais conhecida entre os integrantes da Ocupação como Ni, lembra do medo nos olhos das crianças ao ver aqueles monstros de ferro entrando em terrrenos tão próximos a elas. A insegurança também tomou conta dos adultos que não viram outra solução se 

// reportagens

Revista Bastião | Porto Alegre | 2014

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