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A terra precisa de gente

Visitamos a ocupação "Iluminados por Deus", na zona sul de Porto Alegre. Eles pedem pouco, quase nada. Um teto, água e luz.

Um lugar para morar, apenas.

reportagem: arthur viana, carlos machado cíntia warmling | texto: arthur viana | fotos: cíntia warmling | webdesign: arthur viana

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a terra

prometida

 

 

 

No início, eram poucos. Em meio ao entulho, ao lixo e a estruturas abandonadas, achar o local certo para se estabelecer era um desafio, ainda que a terra fosse vasta. Dez hectares, diziam. O chão árido parecia à beira da morte após tanto tempo de descuido. Ainda assim, aquele pedaço de terra pobre era tudo para aquela pobre gente. É como se se merecessem: tanto a terra quanto as pessoas haviam sido abandonadas. Chão pedregoso para vidas pedregosas.

 

Nos últimos anos, os únicos visitantes eram usuários de drogas e praticantes de delitos. Aquele amplo terreno havia sido reduzido a um esconderijo. E era mesmo um local ideal para isso: as paredes descascadas da antiga indústria de laticínios, a Avipal, que não operava ali há pelo menos sete anos, a escuridão, o mato alto; nada mais perfeito para quem quisesse desaparecer. Vez que outra ainda se ouvia um caminhão de entulho despejar seus destroços ali.

 

Os vizinhos, acostumados com o abandono, esqueceram que o terreno existia. Esqueceram até que aquilo era um lugar. Criaram um escudo para não ver o descaso. Compreensível, é desagradável. Além do que, temos nossos próprios problemas, e são tantos, não queremos sair na rua e nos incomodar com todos os outros problemas que encontramos. E são tantos. Então bloqueamos a visão; é mais fácil não ver.

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Com os novos ocupantes, no entanto, o cenário começou a mudar. Aos poucos, principalmente a partir de julho, novas famílias chegaram e se juntaram aos precursores eremitas, que estão lá há mais de três meses. Fugiam de lugares distantes - Campo Novo, Restinga e outros recantos periféricos -, inóspitos, que a qualquer chuva inundavam e arruinavam casas, móveis e vidas. Fugiam também de aluguéis caros, impagáveis para quem recebe um salário mínimo, quando tanto. Fugiam também porque não recebiam o pouco que mereciam, os aluguéis sociais de parcos 400 reais, que deviam vir e não vinham. O Bolsa Família, auxílio do governo federal para os extremamente pobres, aqueles que subexistem com uma renda familiar per capita de até 77 reais, quase não se via, tão rápido sumia. A conta bancária secava antes da casa, que inundava de novo com a chuva seguinte. 

 

Assim, as barracas se multiplicaram. Hoje, já são aproximadamente 600 famílias. Ouve-se vozes, risadas, bocejos. Há, enfim, vida naquela terra. Agora chegam pedaços de madeira, telha, pregos. Constrói-se, martelada a martelada, a casa tão sonhada. A palavra se espalha e os dez hectares já nem parecem tanto. Será mesmo tanta gente sem ter pra onde ir? E o tempo todo a terra ali, inutilizada, transformada em lixão e esconderijo.

as barracas se multiplicam

 

 

 

Gente que precisa de terra e terra que precisa de gente. Parecia fácil, a solução perfeita. Mas dizem que o abandono tem dono: uma construtora que pretendia fazer ali, na esquina das avenidas Cavalhada e João Salomoni, mais um centro comercial, um shopping, torres residenciais ou qualquer coisa parecida é a proprietária do terreno. Um dia construiria (ou construirá?) seu empreendimento ali. Enquanto o mercado imobiliário não indicasse que fosse o momento certo para o investimento, no entanto, seguiria ali o mato, os escombros, o nada. E a cidade perdendo seu espaço para a especulação. E as pessoas sem lugar para ficar.

 

É só isso que eles pedem: um lugar digno. Não querem invadir, comercializar, lucrar com a terra. Querem ter onde viver. Não se negam a pagar aluguel, se o aluguel for justo. Muitos já se cadastraram e esperam há anos as casas prometidas pelo Minha Casa, Minha Vida. Nunca as receberam. Sem casa, então, sem vida? Cansaram de esperar e agora vão lutar por aquela terra que tinha dono só no papel. Querem mostrar que são os donos legítimos, por serem aqueles que fazem com a terra o que da terra deve ser feito: morar, plantar, viver.

A dona do abandono:

melnick even

 

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cidade

comparti-

lhada

 

A reação da construtora, esperada, veio via judicial. A ordem de reintegração de posse foi dada e os ocupantes teriam 15 dias para sair do local. A Brigada Militar visitou o lugar e educadamente informou que, quando chegasse a hora, todos teriam que devolver a terra ao abandono. Por sorte, a justiça permite recurso. Reuniões em câmaras e gabinetes estão sendo feitas, buscando uma solução. Talvez outro terreno. De preferência aquele mesmo. É mais perto do centro, do trabalho, de hospitais. É parte da cidade. E, ainda que isso soe tão mal para alguns, aquela gente pobre, que agora ocupa aquela terra pobre, também é parte dessa cidade.

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os ocupantes

Falta muita coisa na ocupação Iluminados por Deus. Água, energia elétrica, banheiro, saneamento. Falta também segurança, em um sentido mais amplo que o da violência urbana - segurança de saber que a ocupação se estabelecerá; de saber se a casa construída hoje não será removida amanhã, após alguma vitória judicial da construtora Melnick Even.

 

No entanto, uma série de coisas não falta: pessoas, movimento, barracas, vontade de ficar. Na barraca da Maria Helena Chalmes (acima, direita) também não falta o cafezinho: "Querem conversar? Senta aqui, vamos tomar um cafezinho", convidou. São muitos "bom dia", empréstimos entre vizinhos, boa vontade. Todo mundo se ajudando, mesmo "na flor do nervosismo", como define Maria Helena.

 

Há dez dias ocupando o terreno, ela vê na demora de soluções governamentais, como se propõe a ser o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, uma das causas para o estabelecimento de ocupações como aquela. “Fica só no papel. A gente só consegue na luta, na batalha”. Fifa, Copa, pra isso tudo o governo se mexe. "E onde tem que fazer as coisas, eles não fazem”, reclama a ocupante.

 

Após uma semana de chuvas fortes, a previsão era de que o frio do inverno enfim chegasse. Não é problema. Maria Helena aponta para os entulhos em volta dos lotes. Lenha também não falta.

A alguns metros dali, nos escombros da Avipal, Pedro Bernardes Soares (acima, esquerda), 58 anos, descansava. Apesar do sol que fazia na rua, preferia ficar ali, sob seu teto. Nossa conversa foi de poucas palavras, com muito mais perguntas nossas que respostas dele. Por isso a surpresa com a risada repentina, motivada pela conversa sobre as ações do governo para ajudar as pessoas no que elas precisam. No caso do seu Pedro, remédios. Ele tem problemas de locomoção decorrentes de uma labirintite. Os medicamentos são entregues pela Secretaria Municipal da Saúde, "quando tem".

 

“Encostado” por causa da doença, ele faz tratamento semanalmente no Hospital Vila Nova. Antes de ter a casa no bairro Campo Novo levada pela chuva, na qual morava de aluguel, ele percorria um longo trajeto até o centro hospitalar. Agora, na ocupação, onde está há duas semanas, o caminho é menos tortuoso, cerca de 30 minutos a pé. Como normalmente consegue uma carona ou recorre ao transporte público, em no máximo 15 minutos está no hospital.

 

Seu Pedro divide uma pequena peça na ocupação com três filhos e a esposa. Ele nunca recebeu aluguel social, e critica que com o valor “só aluga peça, não aluga casa”. A renda familiar vem da sua aposentadoria de um salário mínimo (R$ 724). "Nós não queremos nos adonar da terra deles. O que é deles, é deles. Eu quero o direito de morar", defende.

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Daqui uns anos, aquele vai ser um bairro com escola, posto de saúde, luz, saneamento. Na atual divisão de lotes já existe, inclusive, a previsão da construção de uma creche comunitária. Ali, naqueles dez hectares abandonados, nascerá uma comunidade, com famílias felizes por ter onde morar. Tal previsão é de Ricardo Ferreira, um dos líderes comunitários da ocupação, e desejo de todos os outros ocupantes. Se ele estiver certo, Luane, de 6 meses (acima) e sua irmã, Lucymara, de 6 anos, farão parte da primeira geração que crescerá em casas e ruas fruto da mobilização e da luta social das 600 famílias da Iluminados por Deus.

 

A mãe das meninas, Priscila Santana, 24 anos, morou de favor na casa de uma amiga, junto com as filhas e o marido, por um ano e meio. Espera há dois anos por uma oportunidade no Minha Casa, Minha Vida. Tentou financiar um imóvel, mas com o salário de R$ 700 que recebe em um mercado e o marido ganhando apenas o auxílio desemprego, não conseguiu. Ela reclama de prédios inteiros do programa do governo que estão prontos na Restinga e que ainda não foram entregues. Ela não se nega a pagar aluguel, mas exige um preço e um local justos. Aparentemente, a justiça não opera. Por isso, Priscila ocupa.

 

No futuro, Luane talvez nem lembre que no início aquilo tudo era mato, era abandono, era escuridão. Talvez ela olhe fotografias da ocupação e não reconheça nenhuma das ruas onde cresceu, quando eram ainda pintadas de giz e sequer tinham nome. Talvez ela se negue a acreditar que em 2014 se priorizavam os interesses comerciais de uma construtora frente à urgência de tantas famílias. Tomara. Seria sinal de que há motivos para a luta e que a justiça virá, com mais terra para as pessoas e, principalmente, com mais pessoas para a terra.

galeria de fotos

 

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Iluminados por Deus

Iluminados por Deus

Cíntia Warmling

Iluminados por Deus

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Cíntia Warmling

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Cíntia Warmling

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Cíntia Warmling

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Cíntia Warmling

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Cíntia Warmling

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Cíntia Warmling

Revista Bastião | Porto Alegre | 2014

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