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Aos moradores de rua, a rua
Apenas uma instituição de ensino atende moradores de rua em Porto Alegre. E a prefeitura quer fechá-la
qualquer lugar
que não aqui
"Qual o primeiro ônibus para o litoral?", perguntou Josebel Gonçalves na rodoviária. O destino não era uma cidade específica: era qualquer uma que não fosse a que estava. "Porto Alegre e droga pra mim eram a mesma coisa", nos explicou anos mais tarde, embaixo de uma sombra de árvore em um dia ensolarado no pátio da Escola Porto Alegre (EPA), instituição na qual vai se formar ao final do ano. "Capão da Canoa, 12h30", disse a atendente do guichê, ao que ela respondeu sem hesitar: "É esse mesmo".
Duas horas de viagem depois e Josebel desembarca em uma cidade totalmente desconhecida, sem nenhum trocado no bolso, apenas uma ideia fixa na cabeça: arranjar trabalho. Ainda que sem direção certa para ir, sem ter certeza nem pra qual lado ficava o mar e pra qual ficava a estrada, começou sua peregrinação pelas ruas de Capão da Canoa, parando poucas vezes para pedir água ou comida.
Por destino ou acaso, ou então apenas o resultado de sua obstinação, logo em seu segundo dia de caminhada encontrou Seu Billy, que ofereceu a ela um jantar, os fundos de sua casa e uma barraca para que tivesse uma noite tranquila. Josebel, longe de estar em condições de negar tal proposta, agradeceu, comeu e dormiu.
Reportagem: Arthur Viana e Douglas Freitas | Texto: Arthur Viana | Fotos e vídeos: Douglas Freitas | Diagramação: Arthur Viana

Acordou nervosa por estar trancada na garagem, sem poder sair. Sentia-se presa. Pela primeira vez – e certamente não a última –, a pedra fez falta. Mas logo Dona Carmem, esposa de Billy, apareceu no pátio oferecendo mais que o café da manhã: percebendo a força de vontade da jovem porto-alegrense, ofertou exatamente aquilo que Josebel procurava, um emprego. Assim, ela passou a montar barracas na beira da praia, trabalho de meio turno nas areias de Capão da Canoa.
Com um turno livre, passou a observar os arredores. Um dia, a dona de um dos quiosques vizinhos se aproximou e passou a reclamar para Dona Carmem do excesso de movimento, dizendo que não estava dando conta do serviço. Ao ouvir isso, Josebel se intrometeu, minimizando os problemas da dona e garantindo que aquele movimento “não era nada”. Pela confiança, ganhou seu segundo emprego. Dessa forma, ao longo do verão Josebel conseguiu juntar mais de R$ 4 mil, quantia que nunca havia visto em Porto Alegre.
dois empregos
caminho da escola

Aos poucos ficou conhecida na região, fez amigos e tudo parecia em seu lugar. Porém, o tempo foi passando e a saudade da família começou a bater. Josebel percebia pouco a pouco que a hora de voltar se aproximava. E toda vez que pensava na sua casa, sentia um frio na barriga: não sabia se quem chamava era a família ou a pedra; era difícil dissociar Porto Alegre de seu passado. Em Capão da Canoa, se mantinha limpa: não conhecia as bocas de fumo e a vontade de não desapontar quem tanto havia acreditado nela era maior.
Mas o vazio foi se aprofundando e inevitavelmente o dia de voltar chegou. Ao entrar no ônibus para Porto Alegre, Josebel lembrou quando tinha 13 anos e foi para a rua encontrar as drogas. Desencontrou-se desde então, até deixar a capital para trás. O motor roncou e, sem saber se teria forças, ela encarou o passado. Logo ao desembarcar na rodoviária de Porto Alegre, Josebel vomitou sangue. Recém-chegada à capital, as más notícias desembarcaram junto: estava com tuberculose. Muito debilitada, recebeu apoio da família, em especial do pai, e superou a doença. Josebel sabia agora que não poderia decepcionar a todos e voltar à vida que levava antes de ir para Capão da Canoa. Em busca de algum futuro, então, encontrou a EPA.
A formatura na EPA será no fim do ano, mas desde julho a jovem já cursa o Ensino Médio na escola estadual Anne Frank. Mesmo longe, não esquece seus tempos na Escola Porto Alegre: “Quando eu cheguei aqui, contei a minha história e não vi aquela cara dizendo ‘drogada!’. Tu chega ali com os teus problemas e sabe que alguém vai te ouvir. Na droga ninguém te ouve. Se tu tá com um problema, desculpa a palavra, é ‘te fode, cada um com os seus’. O histórico da EPA é de aceitar todo mundo, não interessa de onde tu veio, o que tu faz, quem tu é. Todo mundo é igual. ‘Bah, cara, tu não tem mais conserto’. Isso tu não ouve aqui”, afirma a jovem.
Falar em fechar a escola incomoda Josebel. Para ela, não há sentido na ação da prefeitura: “A EPA não merecia ser fechada. Porque da mesma forma que eles viram alguma coisa boa em mim, eles veem coisa boa naquele pessoal ali que ninguém mais acredita. A pior coisa que tem é tu tá deitado na rua e as pessoas passando por ti. Ninguém tem a capacidade de te dar bom dia. Ninguém. De onde veio essa ideia de mexer em um dos poucos lugares que esse pessoal ainda tem?”.
tu tem conserto

A história de Josebel não é única na EPA: epopeias de superação estão em cada esquina da instituição. São diversos talentos resgatados da rua e do descaso. Bruno é desenhista, Deivyd é fotógrafo, Edisson é jornalista. A escola acolheu a todos e deu espaço para que desenvolvessem seus talentos. É a única instituição em Porto Alegre capaz – e com vontade – de fazer isso. E a prefeitura da cidade quer fechá-la.
A intenção é abrir, em seu lugar, uma escola de ensino infantil. Alunos e professores se perguntam se a área da escola é a única disponível para a nova creche. Os moradores de rua, pela proposta do poder público, passariam a ter aulas no CMET (Centro Municipal de Educação do Trabalhador Paulo Freire), na rua Santa Teresinha, bairro Santana. São 40 minutos de caminhada entre a EPA, que fica na rua Washington Luiz, e o CMET.
Nenhum aluno se mostra favorável à mudança: “Vai dar tudo errado. Tu vai colocar uma pessoa que tem ‘contra’ lá, ‘contra’ aqui. Não existe. A grande maioria do pessoal daqui não pode ir pra lá.”, afirma Josebel. A questão territorial, para quem vive na rua, é muito cara. Além disso, ao lado do CMET, na Vila Planetário, o tráfico de drogas é constante, inclusive o de crack, que seduziu muitos dos alunos da EPA no passado.
pra abrir,
tem que fechar?
Para Eliane Meleti, chefe de gabinete da Secretaria de Educação de Porto Alegre, a questão principal para o fechamento da EPA é financeira: “Chega uma hora que a gente, enquanto gestor, tem que tomar uma decisão. A gente tem obrigação com as pessoas? Tem. Mas a gente tem que ver que todo esse gasto feito na EPA sai de algum lugar: do bolso dos contribuintes”. Oficialmente, segundo o governo de Porto Alegre, apenas 23 alunos frequentam a escola – a outra centena de nomes nas listas de chamadas, por apresentarem baixa frequência, são desconsiderados pelo poder público. “A EPA tem os alunos igualzinho ao de qualquer EJA [Educação de Jovens e Adultos]. Eles são alunos de EJA. A obrigação da escola não é dar banho. A escola tem que dar educação formal, currículo, 200 dias letivos de aula”, afirma Meleti, defendendo que as condições de vida enfrentadas pelos moradores de rua não devem diferenciá-los de outros estudantes.
aos iguais, a igualdade. aos diferentes...

Referência no ensino de moradores de rua e com 19 anos de história, a EPA é também um espaço de convivência para os 116 alunos matriculados. Além das aulas de Ensino Fundamental e oficinas diversas, como de cerâmica e papel reciclado, muitos aproveitam a infraestrutura do local para acessar o Facebook na sala de informática; outros tomam banho e comem as refeições oferecidas – café da manhã, almoço e lanche da tarde. Às 18h, o colégio fecha e os estudantes voltam para a rua. A maioria vive nas redondezas do local, como na Praça da Matriz ou no entorno da Câmara de Vereadores. Outros vão para albergues. Poucos vão para uma casa de fato.
escola-casa
higienização
da orla
Para Edisson Campos, conhecido como Beiço, um dos alunos mais ativos na resistência da escola, é exatamente a questão territorial, mas por outro viés, que explica a vontade da prefeitura de expulsar os moradores de rua daquela região. A área onde a EPA está é nobre, próxima à Usina do Gasômetro, e, obviamente, moradores de rua não fazem parte dos planos de ~revitalização~ da região. Beiço resume a ação da prefeitura em duas palavras: higienização social. “Ali no Gasômetro é a orla da burguesia. Desculpa falar, mas é a verdade. É a orla da burguesia, a orla dos ricos, tá ligado? Eles nunca vão querer morador de rua ali. Mas eles não se ligam que é o único lugar que o morador de rua tem as árvores na beira... para poder comer. Eles não pensam nisso. É pra poder comer, caralho! Tu vai fazer uma barraca, tu tem um anzol, tu joga ali dentro do rio, tu pesca um peixe...".
Indignados e mobilizados, os alunos da EPA se ergueram contra a arbitrariedade do despejo. Com protestos e passeatas, conseguiram adiar o fechamento da escola para a metade de 2015 – o plano da prefeitura era fechá-la já no final do ano. A vitória, no entanto, foi parcial, uma vez que a matrícula de novos alunos foi proibida. Mas cada vez mais vozes se somam a dos moradores de rua e fica difícil ignorá-los. Uma nova audiência pública está marcada para o dia 17 de dezembro.
a 1ª audiência
A primeira audiência, ocorrida em 30 de outubro, sequer contou com a presença da secretária de educação de Porto Alegre, Cleci Jurach, mostrando que a prefeitura nega aos alunos da EPA até mesmo a sua existência. Com tal atitude, empurra-os para a rua e para o esquecimento, se tornando a própria prefeitura a causadora daquilo que supostamente quer se livrar: de pessoas em situação de rua. Negando-lhes oportunidades, o governo de Porto Alegre acaba por transformar potenciais estudantes em potenciais criminosos. “A EPA saindo daqui, eles [os alunos] vão voltar pra rua. Tá na rua, acontece droga, acontece roubo, acontece briga, acontece morte. A quantidade de crimes nesta área vai aumentar”, relata Josebel.

Camaleões escondidos no cinza da cidade, muitos não os veem. Outros, como parece ser o caso da prefeitura de Porto Alegre, fingem não ver, talvez a única forma encontrada para lidar com a gritante desigualdade das ruas. Mas o fato de não serem vistos não faz dos moradores de rua invisíveis. Muito pelo contrário, apenas faz cegos aqueles que não os veem. E contra a cegueira, a EPA resiste.
#NãoFechemaEPA
