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FAROL ACESO NA RUA ESCURA

TEXTO Jéssica Menzel e Nádia Alibio

FOTOGRAFIAS Ingrid Pilar

ILUSTRAÇÕES Nádia Alibio

DIAGRAMAÇÃO Gabriel Hoewell

PUBLICADA ORIGINALMENTE EM 

Fevereiro de 2014 - Edição #18

Na avenida, o fluxo constante, o trânsito caótico, os barulhos dos carros e das pessoas se misturam num ruído incompreensível. Eles seguem rápido, sem parar e com pressa de chegar. A rotina segue todos os dias igual. Amanhece. Anoitece. Na parte escura das ruas, rostos se escondem. O corpo é iluminado pelo rastro dos faróis. Ali perto, nas ruas paralelas, o ritmo é outro. As buzinas dos carros já não são tão altas. Dá para sentir o silêncio. Silêncio de uma exposição velada.

O SONHO DA CASA VIRA A ESQUINA

 

Vivian tinha dois sonhos. Queria ser bailarina quando criança e se formar em engenharia elétrica na juventude. Ela estudou um ano de contabilidade por causa de seu bazar. A loja foi montada com o dinheiro que adquiriu ao longo dos três anos de boate e seis de avenida. Foi com a prostituição que Vivian comprou seu carro, construiu sua casa e abriu a loja. Alguns sonhos foram deixados pra trás.

 

Nasceu no Rio de Janeiro, mas veio parar em Porto Alegre, muitos anos depois, onde conheceu seu primeiro marido.  Foi ele quem sugeriu que ela fosse trabalhar na boate, para ajudar a terminar de construir a casa que os dois morariam juntos. Ele faleceu e Vivian ficou com as dívidas da casa para terminar de pagar. Sua opção foi a prostituição. Do casamento, veio Reizinho, seu maior orgulho. “Reizinho não aceita, mas respeita. Se ele teve estudo, se formou na faculdade e tem as coisas que precisa esses anos todos, foi através do meu trabalho.” Sentada na esquina, Vivian tem tatuado na perna o nome do filho. É a única parte da sua vida fora das ruas que está à mostra. As roupas curtas, os decotes, a maquiagem carregada e o salto alto são seu uniforme de trabalho. Vivian sai de casa de calça comprida e rasteirinha. Na esquina já veste seu traje: “Não vou ganhar nada de calça comprida.”

 

 

 

Na boate em que Vivian trabalhou, beber era regra. Era uma maneira de realizar os desejos dos clientes e de incentivar o consumo do bar. Esse foi o motivo pelo qual Vivian foi trabalhar na rua; ela não usa drogas e não queria ser obrigada a beber para trabalhar. “Tu ganha muito mais lá dentro, e as lá de dentro são mais bem-vistas. Aqui tem tanta mulher drogada, tanta mulher que sai com traficante. Então nós não somos bem-vistas aqui fora, mas trabalha muita gente legal aqui pra construir alguma coisa como eu e algumas que eu conheço.”

 

A autonomia da rua tem seus contras. Vivian não aceita que controlem o ponto. Só vai pagar por ele quando vierem com um papel provando que compraram a rua. Enquanto a rua for pública, ela não aceita se submeter a cafetões.  Já houve uma tentativa de lhe cobrarem pelo seu local de trabalho, Vivian denunciou. No fórum, recebeu um pedido de 

desculpas por parte da cafetina. Cordialmente, ela retirou a queixa e apertaram as mãos, mas as leis das ruas funcionam de outro jeito: ao sair do fórum, um grupo já aguardava Vivian para o acerto de contas. Ela apanhou tanto que perdeu o bebê de três meses que estava esperando.

 

Na avenida, um carro para. Vivian vai receber os três universitários, mas não eram clientes. Eles apontam um extintor de incêndio para o rosto de Vivian e atiram. Foram 26 dias com tampões nos olhos e uma lesão na retina queimada pelo pó químico. “Prestei queixa, só quis provar pra eles que eu sou tão humana quanto qualquer outro. É como queimar um mendigo. Por que queimar um mendigo? O que ele fez pra ser queimado? Por que ele é um mendigo? Não, não existe isso aí. Isso é preconceito. Quando morrer, todo mundo vai virar pó igual. Preto, branco ou amarelo”, diz Vivian. Na delegacia, a mãe de um dos garotos fala ao delegado “Meus filhos nunca foram parar em uma delegacia e vem parar por causa de uma puta?”.  

 

Em maio, Vivian fez 42 anos. No mesmo mês saiu da avenida para viver o sonho do casamento. O relacionamento não deu certo e ela voltou à rua, mas ainda espera achar seu “pé torto”. Vivian segue nas esquinas com o objetivo de guardar um dinheiro para manter seu negócio: “A loja ainda não tá me dando lucro. Se eu não depender dela agora, eu consigo colocar ela do jeito que eu quero, cheia de mercadorias. Aí eu deixo um dinheiro guardado lá no banco para caso houver algum problema, para quando eu largar, largar de vez.” Começa a anoitecer na Avenida Farrapos. É só o começo do expediente de Vivian.

NA RUA UMA PESSOA, NA CASA OUTRA

 

Ciça é discreta, não desfila, e espera os interessados parada, calma, ouvindo música no seu fone de ouvido, mascando chiclete. Ela tem 32 anos e trabalha há 5 na rua. Prefere trabalhar na avenida por não precisar cumprir horário – e pela independência. Ciça não paga nenhum cafetão. Prática e séria, não é de muitas palavras. Sua postura se difere das outras, “eu tô quietinha no meu canto. Com fone de ouvido, analisando o movimento. Eu não chamo, se o futuro cliente quiser ele vem falar comigo. A questão da segurança vai muito da postura da menina. Também é aquela coisa: não se misturar com gente que não presta. Se afastar de droga, se afastar de bebida. Já diz o ditado ‘diga com quem andas que te direi quem és’.”

 

Ciça conheceu o marido num programa. Eles se apaixonaram e casaram. “Nós estamos juntos quase há dois anos. Como ele sempre diz: aqui na rua tá uma pessoa, ao lado dele é outra. Tem que ter esse discernimento. Lá eu sou uma mulher casada, eu sou mãe, eu sou dona de casa. Aqui é a profissional”. Ciça não saiu das ruas mesmo casada. “A coisa que eu mais quero é sair daqui, mas é aquela coisa: onde vou conseguir um emprego que me pague o que eu ganho aqui? A prostituição tinha que ser ‘legalizada’, sem sombra de dúvida. A gente tá aqui pra trabalhar. Não somos vagabundas, não pensa que isso daqui seja vida fácil, porque não é. É uma carga horária alta, e não temos nenhuma garantia.” Ciça se preocupa com o futuro, em como vai ter sua aposentadoria. Mesmo sustentando a família, ela ainda lida com o preconceito da família.  

 

“A família do meu atual marido virou as costas pra mim por causa do meu trabalho. Eu pensei em me separar por causa disso, porque acabou dando muito conflito. A relação dele com a família – que já não era das melhores – ficou pior ainda por minha causa. O meu maior sonho é que o preconceito acabasse. Minha família sabe que eu me prostituo, mas não falam sobre isso. Pra eles eu sou a pessoa mais errada do mundo. O preconceito é muito grande. A gente paga um preço muito alto por isso.”

POR NÃO QUERER LEMBRAR DE COMO CONSEGUIU O DINHEIRO, NÃO GUARDOU NADA

 

Enquanto nenhum carro parava, ela retocava o esmalte. Já era noite, mas ainda cedo para o trabalho. Três gurias se aproximaram com receio, queriam entrevistar Daiane, ou algo assim. Era claro que elas não pertenciam àquele lugar. Estavam nervosas e não sabiam bem o que perguntar. Daiane deixa telefone com elas para se encontrarem outra hora, elas poderiam espantar os clientes. O encontro foi uns dias depois, naquela padaria que Daiane sempre vai. Sentam no fundo. Daiane pede o de sempre: uma empadinha de frango e um café com leite. Apesar de muito diferentes, o clima que se estabeleceu era o da confidência feminina. Elas perguntaram como  Daiane começou a trabalhar nas ruas. Na hora aquele soco no estômago. Ela coloca mais azeite de oliva na empada, talvez para tirar aquele gosto amargo da boca e lembra:

 

“Faz tempo, mas nunca vai sair da minha memória. Eu tinha uns 17 anos, vivia uma situação complicada com a minha mãe e fui viver num abrigo, mas também não me adaptei lá. Eu tinha um namorado, estava apaixonada, era virgem e nós transamos uma vez e ele terminou comigo – ainda me disse que era noivo depois de transarmos. Fiquei em depressão. Eu tinha uma amiga que fazia programa na Borges de Medeiros, eu fui morar com ela e ela me perguntou como eu ia ajudar a pagar as contas, então eu decidi que ia fazer o que ela fazia. Talvez por querer me punir ou por ver ela ganhar horrores de dinheiro. Eu não tinha experiência, então ela me levou naqueles cinemas pornô pra eu aprender como fazer a mão. Meu primeiro cliente era um velho, gordo, o cheiro dele era nojento. Eu só conseguia chorar. Ele tirou minha calcinha, era a segunda vez que eu fazia sexo e eu só conseguia chorar. Não era assim que eu tinha imaginado. Ele acabou, deixou o dinheiro – 150 reais –, foi embora. Foi uma das minhas primeiras experiências com sexo, foi horrível.

 

 

Quando eu vi que podia conseguir coisas com isso, me deslumbrei, pela primeira vez na vida tinha dinheiro pra fazer o que eu quisesse: comprar perfume, ir a restaurantes, comprar roupas. Eu comecei a gostar. Quando eu fiz 18 anos, passei a trabalhar em boate. O problema é que quem trabalha lá precisa consumir droga e bebida. Eu morava lá também. A casa abria duas horas da tarde e fechava às cinco da manhã. Eu cheirava pra aguentar tanto tempo de trabalho – eu trabalhava de segunda a segunda. Me diverti muito, fiz muita festa, usei muita droga, quase não dormia. Consegui juntar uma grana e ir morar com uma amiga. A gente tava perdida, viajando na batatinha, usando muita droga. Era pra eu ser podre de rica, eu ganhava mil por noite. Nada durava muito tempo na minha mão. Eu poderia guardar aquele dinheiro, mas eu queria gastar ele logo para não lembrar de como tinha conseguido ele.

 

 

 

Passei anos em uma casa noturna, mas a maior parte do dinheiro ficava com a dona. A escolha de vir trabalhar na rua foi por ninguém ficar com lucro pelo meu trabalho, mas foi difícil conseguir este ponto, cada esquina tem seu dono, seus limites e suas regras.  Essa esquina aqui eu conquistei, não roubei de ninguém. Não é fácil se virar na rua, a polícia não protege, muito pelo contrário. Assim, o cafetão é quem te cuida, te defende. É complicado pra quem tá começando, o ambiente é hostil, tu tem que ter uma cabeça muito forte. O que rege esse mundo é a sobrevivência. Cada dia é uma batalha. Tu não tem certeza se vai voltar pra casa quando entra num carro pra fazer o programa, mas a gente se protege, conheço todo mundo que trabalha aqui, em bar, loja, boteco e na rua, mas a gente nunca sabe o que vai acontecer.Tem pessoas que não estão procurando sexo, mas alguém para quem contar suas frustrações. Não tenho vergonha do meu trabalho, sei que é importante. Já salvei muito casamento, inclusive.  Sou quase uma psicóloga, às vezes alguns clientes me procuram para desabafar, não só pelo sexo, mas por não conseguirem desabafar. Esse é meu trabalho, mas não a minha vida. A minha vida é meu guri, que entrou agora na escolinha, ele tá aprendendo a escrever, é o meu maior orgulho. Depois que ele nasceu, eu passei a ver as coisas mais claras, fiquei mais responsável. Eu sei que eu tenho alguém que depende de mim me esperando em casa. É por ele que eu vivo.”

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Revista Bastião | Porto Alegre | 2014

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