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Fechamento de residenciais terapêuticos e retorno do grupo teatral Nau da Liberdade para as dependências do Hospital Psiquiátrico São Pedro levantam debate sobre política de saúde mental do governo Sartori.

navegando na contramaré

O      secretário estadual da Saúde do Rio Grande do Sul, João Gabbardo dos Reis, olhava impassível enquanto Solange Gonçalves Luciano falava exaltada ao microfone na primeira plenária ordinária do Conselho Estadual de Saúde: “Eu queria pedir pro secretário que não deixe tirar nossa casa de teatro. Nós, da saúde mental, já rendemos tanto pro estado, pro país, pro senhor, que não é justo que o senhor tire. Nós precisamos daquele espaço pra continuar nossas atividades, e aquilo lá não é desperdício de dinheiro!”. O apelo, no entanto, não teve o resultado esperado: três meses mais tarde, a casa de teatro à qual Solange se referia – a Nau da Liberdade – foi fechada pelo governo estadual, além de outros dois residenciais terapêuticos. Como alternativa, o governo oferece uma saída controversa: uma sala no Hospital Psiquiátrico São Pedro, estigma da institucionalização da doença mental, para os ensaios do grupo.

 

     s paredes mofadas já são praticamente ruínas. A tinta branca descascada permite ver o cimento daquele grande pavilhão, um dos tantos – seis são visíveis, mas podem ser mais – ao nosso redor. Passando pela portaria, contornamos um grande campo de futebol para chegar às velhas edificações. Do outro lado, é possível ver a avenida Bento Gonçalves e seu frenético movimento, mas não se escuta o som dos carros. É como se um gigantesco muro, muito maior que a cerca verde que limita o terreno do Hospital Psiquiátrico São Pedro, separasse de maneira brutal os dois lados. Perceptível, ainda que invisível. Um mundo dividido em dois. Com o tempo, o nome da instituição passou de hospício para hospital psiquiátrico; ainda assim, o São Pedro, inaugurado em 1874, parece ter ficado em algum lugar do passado. A atmosfera silenciosa é quebrada apenas pelos sons dos nossos próprios passos no caminho de brita que leva até os antigos pavilhões – alguns desativados, outros em obras, todos decadentes.

   aramos junto ao portão indicado para então subir uma pequena escada. Logo à frente, uma grande árvore faz sombra ao pátio interno - aparentemente o único ser ainda vivo no lugar. A melancolia é tamanha que o cenário chega a ser bonito. Entramos na porta mais próxima em busca de alguma alma que ainda perambule pelos corredores aparentemente desabitados. A colorida pintura na porta dá indícios de que aquele é o lugar certo – supostamente era neste pavilhão que encontraríamos o espaço teatral do São Pedro, o que se confirma. No entanto, apesar de procurarmos por um grupo de teatro, não está ali o que buscamos.

     ovas indicações nos fazem voltar em direção à portaria, virar à direita, passar o setor de Recursos Humanos, subir a escadaria à esquerda, passar por uma guarita, onde nos apontam as escadas no fim do corredor, as quais devemos descer até o subsolo. No trajeto, passamos pelas salas do doutor Ricardo, do doutor Antônio, da doutora Ana e outros tantos doutores. Chegamos às escadas e descemos. Lá embaixo, um último retorno por fora do prédio, onde vencemos mais carros e mais brita, para então escutar os sons que confirmam que estamos, finalmente, no local certo: a Nau navega, ainda que já nem tão livre.

Reportagem Arthur Viana e Juliano Zarembski // Fotos Livia Pasqual e Juliano Zarembski // Vídeos Livia Pasqual // Diagramação Arthur Viana

a Nau navega, ainda que já nem tão livre

Foto: Juliano Zarembski

  lguns dias antes, numa sala de reuniões da Secretaria Estadual de Saúde (SES), Luiz Coronel, coordenador da área de Saúde Mental do Rio Grande do Sul, garantia que as medidas tomadas pelo novo governo em nada afetavam a luta antimanicomial. Manicômios sequer existem mais, defendia. Existem, no máximo, minicômios. Quem dizia que a sua gestão era um retrocesso, portanto, estava preocupado era com o “campo das crenças”. Ele não: era homem pragmático. Suas ações eram baseadas em evidências científicas. A razão vinha antes da emoção. Por isso, logo em início de mandato, fechou três residenciais terapêuticos, dois dos quais sequer haviam sido ocupados ainda. Segundo o secretário, eram locais que não estavam regulares e não podiam funcionar, além de representarem um gasto “orbitante” para o Estado.

O aluguel mais caro das três casas, de acordo com nota divulgada pela SES, era de R$ 8.326,37. De forma um tanto paradoxal, Coronel garantiu também que cinco novos residenciais serão abertos em breve, sem data definida. Os aluguéis devem ser mais baixos, por serem em locais menos valorizados e supostamente mais próximos de quem utiliza os residenciais – a quem o secretário repetidas vezes resumiu a usuários de drogas. O imóvel com aluguel de oito mil reais fica localizado na rua Coronel Marcos, número 330, bairro Ipanema; o aluguel mais barato era o de uma casa na rua Sargento Nicolau Dias de Farias, número 188, no bairro Tristeza (R$ 5.028,55 mensais); o outro imóvel, com aluguel de R$ 7.600, ficava na rua Dom Pedro II, a “Avenida Paulista de Porto Alegre”, nas palavras do Coronel.

   llgumas semanas antes, nós próprios estávamos nessa casa na Avenida Paulista porto-alegrense. Era manhã de segunda-feira pós-Páscoa quando chegamos e, em um pequeno pátio à frente da casa branca, Paulo, Pôncio e Ronaldo olhavam o movimento da rua, sentados em cadeiras de praia. Em seguida chega Cacá, que terminava seu passeio ao redor da quadra feliz por ter ganhado chocolates dos vizinhos. Dentro da casa, uma sala com dois sofás levava a uma antessala que tinha, à esquerda, dois cômodos e dois banheiros; e, à direita, a cozinha e as escadas para o andar inferior, onde ficava a churrasqueira. À frente da antessala, a área nobre do local: um amplo cômodo com cerca de dez metros quadrados, onde o grupo Nau da Liberdade ensaiava seus espetáculos. Quatro degraus separavam o grande palco do resto da casa. Neles ficavam sapatos, inibições e restrições; subiam ao palco cantoras e cantores, atrizes e atores, todos mergulhados em suas performances e no espetáculo.

Quatro degraus separavam o grande palco do resto da casa. Neles ficavam sapatos, inibições e restrições

         grupo Nau da Liberdade é composto por usuários do sistema de saúde mental do Rio Grande do Sul. A maioria é formada por egressos do São Pedro que hoje vivem em residenciais terapêuticos – poucos moram com familiares e dois ainda vivem no próprio hospital psiquiátrico. São 18 integrantes. O objetivo do grupo é incluir pela arte, em suas mais variadas expressões – teatro, dança, música, poesia, pintura –, e alcançar, a partir da cultura, ganhos em sociabilidade e autonomia. No final de maio, a Nau completou dois anos: a iniciativa começou a tomar forma em 2013, a partir da visita de um grupo teatral italiano que trabalhou junto aos usuários e funcionários do sistema práticas artísticas para a melhora da saúde mental. Da ocasião nasceu um filme, A Arte da Loucura. Daí em diante, o teatro caiu no gosto de todos e virou coisa séria: hoje, são realizados em média três encontros por semana e o grupo já se apresentou em cidades do interior gaúcho, como Santana do Livramento, Alegrete, Farroupilha e Caxias do Sul, além de algumas capitais do país, como Curitiba e Rio de Janeiro. O sucesso é tanto que prêmios e convites para novas apresentações se acumulam.

O sucesso é tanto que prêmios e convites para novas apresentações

se acumulam

     inda assim, a casa onde ocorriam os ensaios foi fechada, e a Nau se viu obrigada a retornar às dependências do São Pedro. Para quem conseguiu sair de lá, a volta é amarga. Tânia dos Santos balança a cabeça negativamente quando perguntada sobre o que achou da troca: “Eu não gosto do São Pedro”, repete ela, lembrando que em alguma sala daqueles velhos pavilhões já foi amarrada e medicada contra a vontade. Hoje, ela mora com o marido e dois cachorros na Morada São Pedro, residencial terapêutico localizado nas costas do hospital psiquiátrico. Além das atividades no teatro, também é ajudante em uma lavagem de carros.

Sobre o novo local para ensaios, Tânia reclama da falta de espaço e do frio, mas a verdade é que isso é pouco frente a tudo que já enfrentou. Uma das principais cantoras da Nau, ela traz no tom de voz triste a dor de uma mãe que nunca pôde conhecer os filhos, entregues pelo Estado a outra família; a dor de quem passou a maior parte da vida presa em sistemas falidos – Febem (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor) e o próprio São Pedro; a dor de ser incompreendida. Talvez por isso que peça ao vento, tão ansiosamente, que diga, de uma vez por todas, onde se escondeu o amor.

    lém do valor do aluguel, outra justificativa para a entrega do imóvel onde funcionava a Nau da Liberdade era que o local não cumpria sua “destinação original”. Nem tantas noites atrás, porém, antes do retorno do teatro às dependências do São Pedro, aconteceu na Dom Pedro II o Sarau da Nau, um evento com música, poesia e performances diversas, aberto à comunidade. Talvez não fosse essa a sua destinação original, não sabemos, mas foi sem dúvida uma grande ocasião. Em certo momento, o Marlon, orgulhoso mestre de cerimônias, declamava ao microfone, com sua voz grave, que saiu igualzito ao pai. Ao seu lado, Cacá, com o rosto pintado, cantava Jesus Cristo, do Roberto Carlos, sua música favorita, e a sua voz invadia o microfone, se misturando à poesia de Marlon. Aos pés dos dois, Deco dedilhava o violão, e sua falta de ritmo acabava por se mesclar em perfeita sintonia à música e poesia dos colegas. Perto dali, entre uma declamação e outra, Solange filmava toda a confusão, enquanto Paulo mostrava habilidade na dança e não largava nenhuma das moças da festa. O Gabriel, como sempre, sorria para tudo. Assim a Nau da Liberdade seguia seu navegar, feliz, resistindo em meio à tempestade.

O Gabriel, como sempre, sorria para tudo

        arlon não é apenas mestre de cerimônias: no teatro, é também o maestro e, no dia a dia, o assador oficial do grupo. Naquela primeira manhã em que os visitamos, foi ele quem preparou a lista de compras para o almoço, enquanto Ronaldo ficou responsável por comandar a expedição até o supermercado.

“Quatro quilos de costela, dois de coração, dois de salsichão... Fechando dez quilos tá bom”, avisou o churrasqueiro. Ele, muito envolvido com a casa e com o teatro, garante que a troca de espaços e a consequente volta ao São Pedro é um “prejuízo”. Nem os apelos diretos feitos ao Coronel em audiência sobre o tema adiantaram: Marlon ficou sem a sua churrasqueira.

     esde a troca de gestão no governo estadual que a mudança era esperada, mas a data exata para a desocupação da casa na Dom Pedro II era ainda uma incógnita. Até que em uma quarta-feira, 22 de abril, Conceição de Abreu, uma das servidoras que trabalha com o grupo (ela e a sua colega Fátima Fischer são as únicas remanescentes: as outras colaboradoras tiveram os contratos finalizados pelo novo governo), recebeu uma ligação de Ubirajara Brites, diretor da DAUM (Divisão de Atenção ao Usuário Morador), órgão da SES: as chaves do imóvel deveriam ser entregues no dia seguinte.

   m mês mais tarde, já no São Pedro, o aniversário era da própria Nau. Dessa vez, porém, não houve festa. O plano era simples: um passeio pelas águas do Guaíba no catamarã que liga Porto Alegre à cidade homônima ao lago. No entanto, Bira não deu permissão para a saída. Antes, ele já havia proibido a participação do grupo no evento Mental Tchê, que aconteceu entre 6 e 8 de maio em São Lourenço do Sul. O fórum debateria a saúde mental e tinha como tema central, ironicamente, a desinstitucionalização. Sem permissão superior, a Nau foi impedida de viajar e participar do evento.

Talvez por tudo isso que Olinda Goulart, 50 anos, reclame da forma como Bira lida com o grupo de teatro. Não é sem um tom de saudade que ela lembra de Rafael Wolski, antigo diretor da DAUM: “Com o Rafael a gente podia dormir fora...”. Rafael dirigiu a DAUM de 2011 a janeiro de 2015, e sua voz é mais uma que se soma às críticas sobre o retorno da Nau da Liberdade às dependências do São Pedro. Para ele, as políticas aplicadas pelo governo Sartori não fazem sentido: nada explica o retorno aos muros. Nem mesmo a justificativa de corte de gastos se aplica: é mais custoso manter um hospital psiquiátrico que os residenciais terapêuticos, explica Rafael.

Nada explica o retorno aos muros

      nota da secretaria da Saúde que justifica os fechamentos dos residenciais terapêuticos fala que “a decisão está baseada no fato de que dois, dos três imóveis, nunca foram utilizados e permanecem desocupados” (o outro é o teatro). Ivarlete Guimarães, que integra o Fórum Gaúcho de Saúde Mental e o Conselho Estadual de Saúde, além da própria Nau da Liberdade, garante que os locais estavam prontos para uso. Quando nos encontramos na casa da Dom Pedro II, ela contou uma história interessante sobre a questão: em 2014, a Associação Brasileira em Defesa dos Usuários de Sistema de Saúde (ABRA), a Sociedade de Apoio ao Doente Mental (SADOM) e o Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (SIMERS) entraram na Justiça (para consulta: o número do processo é 70062019690) pedindo que usuários de saúde mental já transferidos para residenciais terapêuticos voltassem ao São Pedro e que, em caráter imediato, fosse suspensa a transferência de novos pacientes. Na época, Coronel integrava a diretoria da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e apoiou publicamente a ação. A Justiça aceitou em parte o pedido das entidades e o Estado ficou proibido de realizar novas transferências. No entanto, a decisão passaria por novo julgamento, permitindo ao Estado que se defendesse. 

Nesse segundo momento - que, de acordo com Ivarlete, demorou a acontecer devido ao período eleitoral de 2014 -, a Justiça entendeu que havia nítida melhora na condição dos pacientes transferidos aos residenciais, “pelo resgate da autonomia e dignidade conferidos por essa nova interação social proporcionada”. Porém, em 2015, quando assumiu como coordenador da saúde mental, Coronel usou exatamente a desocupação provocada pela ação (que viria a ser negada pela Justiça e que ele próprio apoiou) como motivo para rescindir os aluguéis dos imóveis. Sem contar com a parceria do governo, Ivarlete revela que uma das saídas encontradas pela Nau foi se formatar como uma associação da sociedade civil. Assim, pode concorrer a editais, consolidando sua atuação independente do poder público. “O governo vê custo, não vê benefício”, reclama. Para ela, a Nau da Liberdade representa muito mais que o valor de um aluguel: o teatro desperta o desejo pela vida, enquanto o manicômio adormece, medica, controla. “Quando eles saíram para os residenciais e para o teatro, se percebeu uma mudança significativa de comportamento. As crises diminuíram, assim como o uso de medicamentos. Voltar gera um sofrimento”, alerta Ivarlete.

     oltar. Coronel garante não haver retrocesso nas suas ações, mas é impossível ignorar que todas as vozes envolvidas no assunto digam o contrário. Mais ainda: as vozes dos próprios usuários do sistema de saúde mental se levantam radicalmente contra o retorno ao São Pedro. São elas que sofreram naqueles corredores; mais que qualquer outra, são essas as vozes que devemos ouvir agora. Afinal, a Nau da Liberdade pede nada mais que o próprio nome diz: liberdade. Liberdade para ser, para se expressar. Liberdade para existir. Enfático, o Coronel reduz tudo ao “campo das crenças”. Ele é homem científico. Pois a Nau insiste em acreditar nas pessoas e, mesmo no mau tempo, navega.

Liberdade para ser,

para se expressar.

Liberdade para existir

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Pátio interno de um dos pavilhões do Hospital Psiquiátrico São Pedro

Foto: Juliano Zarembski

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O mofo prolifera nas antigas edificações do São Pedro

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Foto: Livia Pasqual

Todos que sobem ao palco precisam descalçar os sapatos antes

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Foto: Livia Pasqual

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Ronaldo caminha pela casa na avenida Dom Pedro II, fechada pelo governo do Estado

Foto: Livia Pasqual

Porém, o dia seguinte, no caso a quinta-feira, 23 de abril, não era um dia qualquer: estava programada uma festa de aniversário para Lindomar, integrante da Nau. Era a primeira festa de aniversário que ele teria na vida. Pois Conceição, que é técnica de enfermagem, contrariou o Bira – como Ubirajara é chamado – e avisou: as chaves seriam devolvidas qualquer outro dia, menos no aniversário do Lindomar. O 23 de abril era dele; era da Nau. E assim foi: a desocupação ocorreu um dia mais tarde, com o Lindomar um ano mais velho e um tanto mais feliz – e com o Bira um tanto mais zangado.

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Foto: Livia Pasqual

De tanto que se diverte, Gabriel ganhou um apelido: Gabriel Sorriso

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Paulo durante um dos ensaios da Nau da Liberdade

Trecho da entrevista de Rafael Wolski, ex-diretor da DAUM (Divisão de Atenção ao Usuário Morador)

Revista Bastião | Porto Alegre | 2014

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