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A LIBERDADE NUNCA É PLENA

semiaberto: inicio

reportagem: arthur viana, sergio trentini |  fotos: sergio trentini | foto de capa: sylvar (creative commons)

reportagem publicada originalmente na Revista Bastião, edição #19

SEMIABERTo, SEMIGENTE

semiaberto: semigente

A lógica é simples: quem comete uma infração, assume uma dívida e deve pagar por ela. Hoje, a pena é a exclusão temporária do convívio social. Após determinado período, a pessoa gradualmente reintegra-se à vida em comunidade. Sem dever nada a ninguém, pode retomar seus projetos. Não é o que acontece. Quem comete um crime, sobrevive em um ambiente precário e violento, ficando marcado pelo resto da vida. O Estado não cumpre seu papel estabelecido por lei: não fornece condições mínimas para que o preso se recupere. A sociedade também fecha os olhos, e o que acontece fora da sua vista não importa; o outro lado do muro é um mundo distante. Sem atrair holofotes, investimentos no sistema prisional não ganham eleições; logo, não valem a pena. Enquanto isso, paradoxalmente, iniciativas isoladas tentam burlar o sistema para fazê-lo funcionar. Após cumprir um sexto da pena, o detento pode trocar o regime fechado pelo semiaberto, podendo até trabalhar. Chamam isso de progressão de regime. Que fique claro que o avanço é estrito nesse sentido. O preconceito é retrógrado, e impera.

PRECISAMOS DE OPORTUNIDADES

semiabenrto: oportunidades

Um terço da vida Jucimar Alberto de Cândido (esquerda), 32 anos, passou preso. Jarbas dos Santos Ávila (no meio), 27 anos, afirma que desde os 14 deve ter ficado no máximo dois anos em liberdade. Carlos Vanderlei Pereira da Silva (não quis aparecer na foto), 32, e Márcio da Luz (direita), 30, também passaram longos períodos trancafiados em presídios, misturados à imundície e suportando péssimas condições estruturais. São vidas adultas inteiras convivendo com o descaso do poder público e a discriminação da sociedade. Matou, morreu, não tem perdão.

Mesmo em tais condições, Jucimar, Jarbas, Carlos e Márcio superaram o período no regime fechado e, após cumprirem um sexto de suas penas, progrediram para o semiaberto. Hoje trabalham, têm dias de lazer, convivem, vivem. Talvez não por completo, pois carregam para sempre a chaga de ser presidiário no Brasil. O fardo é quase insuportável; o preconceito, imenso.

CARRIS ABRE AS PORTAS

( DOS FUNDOS )

semiaberto: carris

Os quatro trabalham na mais antiga empresa de transporte coletivo do País em atividade, a Carris − sociedade de economia mista com o controle acionário da prefeitura de Porto Alegre. A companhia participa do PAC (Protocolo de Ação Conjunta), uma iniciativa da Susepe (Superintendência dos Serviços Penitenciários) para reinserir os presos no mercado de trabalho. As empresas envolvidas ganham benefícios, como a isenção de todos os encargos sociais devidos aos demais empregados, e o preso, além da oportunidade, ganha a diminuição da pena: a cada três dias trabalhados, reduz-se um dia da punição.

 

Matéria do Portal CNJ (Conselho Nacional de Justiça) afirma que a contratação do preso chega a custar três vezes menos que a contratação de funcionários regidos pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).


Segundo dados do InfoPen (Sistema Nacional de Informação Penitenciária), apenas 18,45% da massa carcerária brasileira tinha algum trabalho em 2011, fosse ele interno (nos próprios presídios) ou externo. Ao todo, hoje, 52 presos trabalham na Carris. A companhia participa do PAC desde 2001 e, de lá para cá, 1.397 apenados já passaram pela empresa. Eles recebem salário (75% do mínimo) e alguns benefícios. Jarbas revela que, no montante, a remuneração chega a R$ 950. Porém, além do salário, recebem também uma alta dose de preconceito: o uniforme é diferenciado, o vestiário é separado e o banheiro é único, afastado, sendo expressamente proibido que utilizem qualquer outro, sob pena de exclusão do programa. Márcio conta que, de tão grande a fila, tem vezes que alguns não se seguram e vão na grama mesmo, seja lá para o que for.

OS CALÇAS VERDES

O uniforme dos presos que trabalham na Carrisé diferente dos outros funcionários “A calça verde é pra ver de longe quem é preso”, avisa Carlos Vanderlei sobre o uniforme utilizado pelos presidiários. Ele é responsável pela limpeza dos banheiros da companhia. Vez que outra, pedem pra que ele limpe alguma sala também. “Aí fica alguém te vigiando”, conta. Não existe confiança. Carlos só não é vigiado na limpeza dos banheiros, onde não há nada para ser roubado.

NÃO FALEM DE MIM

semiaberto: comentários

Comentários em matérias dos sites Terra e G1 sobre presídios escancaram preconceito

DEVO, nÃO NEGO

( MAS ME DEIXEM PAGAR )

semiaberto: devo

Jucimar encontrou saída para a vida do crime por meio da religiosidade. Cumprindo pena no Presídio Central, foi chamado para um culto evangélico. Decidiu ir e lá encontrou sua salvação. Não é algo que se ache em qualquer esquina do Central, a salvação. “Lá não há separação de alas, então ficamos misturados com presos de alta periculosidade. Tem gente que fica planejando o crime 48h por dia. O sujeito sai de lá pior.” Jucimar, no entanto, saiu melhor. Ele é um dos usuários de tornozeleira eletrônica − recebeu a chance por bom comportamento −, e tem todos os seus passos monitorados pelo GPS. Nada que o incomode: com a tornozeleira, pode dormir em casa, em Canoas. E um sorriso se abre quando começa a falar do terreno que está financiando, graças ao dinheiro que está juntando nos dois anos trabalhando na Carris. Pela segunda chance recebida, agradece, e ensina: “A solução não é aumentar pena, colocar pena de morte. Tem que dar oportunidade.” Segundo números não oficiais (a fonte é o próprio Jucimar), apenas 5% dos presos que passaram pela Carris reincidiram no crime.

 

A verdade é que todos agradecem a oportunidade. Sabem que, não fosse o programa, dificilmente conseguiriam trabalho. “Fui trabalhar em um condomínio uma vez, mas quando descobriram que eu era preso disseram que não ia dar”, relata Jucimar. Sem oportunidades de emprego formal, o que resta para muitos é o retorno ao crime. É a própria sociedade que os joga de volta ao submundo, marginalizando-os e se negando a reincorporá-los ao cotidiano.

PROGRAMA DE ACELERAçÃo

DO CRESCIMENTO

semiaberto: crescimento

Maurício Sperrotto de Almeida (direita, sem a calça verde), conhecido como Maradona, é coordenador do setor de manutenção predial da Carris, no qual trabalham 22 presos. Para ele, pouco importa o crime cometido pelo apenado. Se ele quer trabalhar, merece a oportunidade. “Não importa o que o cara fez. Importa se ele é responsável, se quer mesmo trabalhar, se é tranquilo. Pra mim tanto faz qual pena ele está cumprindo”, comenta. Maradona é respeitado pelos presos, talvez por não se mostrar condescendente. Durante a entrevista, o coordenador foi o primeiro a falar abertamente sobre o preconceito sofrido pelos presos.

 

O critério de contratação, explica Maradona, é simples: para participar do PAC (que se significasse Programa de Aceleração do Crescimento faria perfeito sentido), o preso precisa ter bom comportamento. Depois, preenche uma papelada e aguarda a abertura de alguma vaga. Quando a Carris precisa de alguém, liga para os albergues e vê os nomes que estão disponíveis. “Só não aceitamos quem tem o perfil agressivo”, conta. Jarbas (ao centro) progrediu de regime há seis meses e há dois foi contratado pela Carris. 

PRA QUE SERVE O PRESÍDIO?

( GALERIA DE FOTOS )

semiaberto: galeria

Aberto, semi, fechado. O período de reclusão não cumpre sua função básica de ressocialização

 

A luta pela reinserção social é dura. O convívio com o preconceito é difícil de suportar, e saber que qualquer desvio de conduta pode levá-los de volta ao inferno das casas prisionais não deixa as coisas mais fáceis. Jucimar, que passou por quase todas penitenciárias do Rio Grande do Sul, sabe bem que o sistema não favorece a recuperação pessoal − “o Central é o pior”, conta. Em sua visão, o Estado deveria fornecer livros, escolas, cursos profissionalizantes, para que o tempo de pena cumpra seu objetivo primordial: recuperação e reinserção social do preso.

Foto:

NA TEORIA ESTAMOS BEm, OBRIGADO

No papel, está tudo certo. “Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política”, versa o parágrafo único do Art. 3º da Lei nº 7210, publicada em 11 de Julho de 1984 e conhecida como Lei de Execução Penal. Alguns artigos depois, é advertido que “a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”.

 

O problema, explica o desembargador José Conrado, da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, é que não foi criada uma estrutura material a partir do que foi escrito. “A execução da pena é um problema social, mas todos sabem que a ideia da construção de presídios não traz votos para os políticos”. E a população não tem essa consciência social, a noção de que vivemos em comunidade. Exemplifica pedindo que olhemos para as calçadas da cidade: “As pessoas jogam lixo na rua porque não se sentem donas dela. Deve pertencer a uma entidade etérea, metafísica. O brasileiro não se sente dono da própria rua!” Para o desembargador, o que precisa ficar claro é que o sistema prisional é uma questão de sobrevivência social, assim como escola e hospital. “Somos um povo muito individualista, não conseguimos pensar em comunidade.”

fotos: sidnei brzuska

SOMOS GENTE

Quando seres de mundos distantes chegam à mesma conclusão,

é porque ela não é tão complicada assim

 

 

 

 

 

 

Jucimar, com a fé que encontrou em uma das alas do Presídio Central, e o desembargador Conrado, em seu gabinete cheio de livros, vivem em mundos diferentes e têm trajetórias absolutamente distintas: enquanto um ocupou-se em julgar crimes, outro, por muito tempo, tratou de cometê-los. Ainda assim, as soluções encontradas por ambos para o problema dos presídios são próximas. Bastou entenderem que estão tratando de pessoas. Ao fim da entrevista, Jucimar repetiu uma última vez: “Aumentar pena, colocar pena de morte: nada disso é solução. Nós precisamos de oportunidades.”

 

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Revista Bastião | Porto Alegre | 2014

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