literatura // Pedras ao vento
- revistabastiao
- 1 de mai. de 2013
- 2 min de leitura
Autor: Gilberto Sena
O sinal vai fechar, já consigo vê-lo esperando meu carro parar. No lugar de limões, laranjas ou bolas de tênis, ele segura três pedras. Paro o carro. Ele me olha. Olha para todos os outros motoristas e lança as pedras para cima, uma após a outra. Não presto atenção. São tantos que fazem isso em qualquer esquina. Lembro do que o Paulo disse no final da aula ao reclamar da corrupção: “Se estivéssemos na ditadura tudo seria diferente.” Pensando bem, eu até concordo, seria mesmo. Tudo diferente. Se estivéssemos na ditadura, talvez esse menino que joga pedras pra cima fosse o meu filho. Da mesma forma que meu pai foi morto pela "revolução militar", talvez eu não estivesse aqui hoje.
Meu filho teria que se virar para arrumar alguns trocados. Eu tive que me virar para arrumar alguns trocados. Mas fiz diferente. Me rendi ao ódio e vesti o mesmo uniforme dos assassinos do meu pai. Mas fiz diferente. O meu uniforme serviu para trazer a paz. Com ele salvei muitas pessoas na maior enchente da história de Alagoas. Com ele trabalhei em mais de 20 estados. Com ele também gastei mais de 400 tiros por noite nos morros dominados pelo tráfico no Rio de Janeiro. Por que mesmo? Ah, pela paz... Faz 22 anos que faço isso. Acredito que faço diferente deles. Com o mesmo uniforme. − Uma ajuda aí, tio... − O que tu precisa, garoto? − Sei lá, tio, qualquer coisa... 5, 10 centavos... − Serve esse pacote de biscoitos? − É, pode ser... mas não tem uma moedinha também? Não tenho moedas. Meu filho coloca todas no cofre. Guarda dinheiro para a formatura. De tanto me ver naquele uniforme ele resolveu entrar pra escola militar. Quer salvar pessoas da mesma forma que o pai. Quer fazer diferente. Pelos meus cálculos, consigo me formar um pouco antes dele. Serei capitão. Quando ele se formar receberá das minhas mãos a espada de militar. É o meu sonho. Era o sonho do meu pai. Se estivéssemos na ditadura, seria tudo diferente mesmo. O sinal abriu. Sentado no meio-fio uma criança come biscoitos ao lado de três pedras.
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