cultura digital // Cidades Copyleft
- revistabastiao
- 19 de set. de 2013
- 4 min de leitura
Autor: Bernardo Gutiérrez
Alguns dias atrás eu sonhei que era um DJ de ruas. A cidade estava em uma mesa de mixagem. Pegava pedaços de praças, fragmentos de ruas e os mesclava com desenvoltura. Nada como pegar a pele verde de um parque e colocar em um sulco do vinil (sobre uma avenida). A cidade, volta após volta, nunca era a mesma. Às vezes, bastava em voltar atrás (scrath) para melhorar o remix. Em outras, melhor avançar. Encontrar uma variante diferente.
Confesso que antes de dormir devorei um coquetel explosivo por vários dias: reli O direito à cidade (um ensaio urbanístico de Henri Lefebvre) e Software livre para uma sociedade livre (um conjunto de escritos e conferências de Richard Stallman). Lefebvre afirmava que o “urbano é uma obra dos cidadãos” e não “uma imposição do sistema”. A cidade, dizia, não é “um livro já acabado”, mas sim “a linguagem dos indivíduos”. E não é apenas uma linguagem, “e sim uma prática”.
Richard Stallman, fundador do movimento software libre, afirma que “a liberdade e não apenas a tecnologia é importante”. Por isso golpeou a licença copyright com suas próprias armas. Ele criou a licença copyleft que libera a cópia e o remix de um programa informático exigindo daqueles que a utilizam que usem a mesma licença aberta. Stallman abriu uma porta: a de cooperação entre indivíduos. Os programadores com software não-proprietários trabalharam juntos em rede, melhorando algo para o bem comum. Tal como os cidadão fazendo a cidade na prática. Tal como os artistas liberando suas obras. ”A visão de um regimento de hackers com a mão na obra – escrevia Stallman – constitui uma fonte de alívio e alegria e penso que a cidade sobreviverá para o momento.”
Relacionar a Lefebvre e a Stallman não é um capricho. É uma intuição infalível. Algo totalmente lógico. Stallman tem claro que o software livre não é um produto: é um movimento social. Lefrebvre sofria vendo a cidade “convertida em um objeto de consumo”. Stallman afirma que “um bom cidadão é aquele que colabora, não aquele que alcança sucesso quando rouba os outros” (proprietário de mercado). Lefrebvre exalta o “valor de uso” (o gozo, a beleza) versus o valor de troca (o mercado e suas exigências). E o mais revelador, ambos vislumbram um mundo governado por corporações escuras e objetos privatizados. “A coisa mais importante é resistir à tendência de dar mais poder para as empresas em detrimento do público”, disse Stallman. “A cidade é a projeção da sociedade global sobre o terreno”, afirmou Lefebvre. Software livre para uma sociedade livre. Software livre para uma cidade livre.
Continuamos jogando. Imaginamos a Lefebvre programando. Ou a Stallman pensando a cidade. Aplicamos adefinição de software livre a uma cidade. Com uma nuance: substituir a palavra “programa” por “cidade”. Vamos jogar:
Liberdade 0. Liberdade para executar a cidade seja qual for nosso propósito.
Liberdade 1. Liberdade para estudar o funcionamento da cidade e adapta-lo às suas necessidades – o acesso ao código-fonte é um pré-requisito para isso.
Liberdade 2. Liberdade para redistribuir cópias e assim ajudar ao seu próximo.
Liberdade 3. Liberdade para melhorar a cidade e depois publicar para o bem de toda a comunidade.
Nós poderíamos mudar “programa” por “rua” ou “praça”. “A liberdade para executar a praça seja qual for o nosso propósito …”. O copyleft seria a licença legal que garantiria este “valor de uso” lefebvriano da cidade. O copyleft garantiria uma cidade /software livre. Permitiria “a livre distribuição de cópias e versões modificadas de uma cidade, exigindo que os mesmos direitos sejam preservados nas versões modificadas.” O código-fonte – a essência da cidade, sua rede, sua operação – estaria visível. Seria modificável. Melhorável coletivamente. O intercambio entre usuários de P2P (peer-to-peer) se tornaria uma Praça2Praça e um Parque2Parque.
Esta hipótese retro-futurista não é ficção científica. Inspirados no software livre, Rahul Srivastava e Matias Echenove, do brilhante e inclassificável estudo Airoots, escreveram em 2008 seus 12 princípios para uma arquitetura da participação. E há inclusive uma licença aberta específica para cidades. O escritor Matthew Fuller e o urbanista / designer Usman Haque (criador de Pachube) se atreveram a propor uma licença para a construção e desenho das cidades de código aberto: o Urban Versioning System 1.0.1 (UVS). No escrito, os autores despedaçam os paradigmas da arquitetura espetáculo e o urbanismo que trabalha com objetos de fórmula fechada: “UVS reconhece que o mundo está construído por seus habitantes em cada momento”, “As pessoas vão projetar, de forma colaborativa, em direções nunca imaginadas”, “Apenas o modelo de construção que é capaz de perder sua trama é adequado”.
Esta sonhada cidade copyleft acabaria com aqueles “consumidores de produtos e espaços” de Lefebvre. Aadhocracia multidisciplinar de “amadores” acabaria com a burocracia urbanística. A cidade post it liquidaria a cidade definitiva convertida em objeto de consumo. A cidade deixaria de ser um produto de fórmula fechada para ser umaZona Autônoma Temporal com uma trama coletiva em construção. E nada melhor para aterrizar no conceito de cidade copyleft que repassar práticas já existentes, linhas de código que já estão sendo escritas.
Uma cidade copyleft é uma praça aberta, participativa, cujo código fonte está escrito coletivamente (projetoWikiplaza). A cidade copyleft é um espaço urbano gerido e melhorado em rede (projeto Esto es una plaza). A cidade copyleft é um conjunto compartilhado de dados abertos sobre os orçamentos de cada bairro (projeto Mon Quartier). Ou uma visualização de qual caminho leva o lixo desde que sai de casa (projeto Trash Track).
A cidade copyleft será – já está começando a ser – uma co-criação coletiva em eterno estado beta (em desenvolvimento). Uma imprevisível sessão de um DJ mash up que junta pedaços de melodias e ritmos já existentes com total liberdade criadora.
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