literatura // Como vai seu pé esquerdo?
- revistabastiao
- 10 de mar. de 2014
- 3 min de leitura
Autor: Sergio Trentini
Meu pé direito está molhado. Com meu pé esquerdo vai tudo muito bem, obrigado. De alguma forma isso se relaciona à Copa do Mundo e aos ônibus de Porto Alegre e principalmente ao direcionamento de energia.
A cabeça e o corpo estão bem protegidos e mesmo assim não me relaciono bem com a chuva. Preciso cuidar para não deixar cair a mochila - que insisto em carregar apenas no ombro direito. Outra coisa necessária é posicionar bem o guarda-chuva contra a chuva e pular as poças d’água pela calçada. A última ação auxilia a mochila a escorregar pelo ombro. Quando vou analisar a posição do guarda-chuva afundo o pé em uma poça.
A chuva e o frio e o pé na poça levam para os bueiros, junto com a água, toda a paz interior de um simpatizante do budismo. É preciso uma enorme elevação espiritual para passar por isso numa boa, acredito. Caminhando e sentindo o tênis que antes era puro conforto virar uma esponja barulhenta pode alterar o humor.
Quando chego ao ponto de ônibus não estou mais com o pé molhado, mas a perna direita inteira. Um carro fez o favor de passar rente a sarjeta e distribuir a água acumulada entre as pessoas que caminhavam na calçada.
Uma multidão se espreme em busca de abrigo no ponto esperando o ônibus. Estão em um silêncio combinado. Lembro de um vídeo que vi de meditação guiada no YouTube, o fundo musical tinha o barulho da chuva. Todos em silêncio, analisando cada gota se desfazendo no asfalto. Quase consigo esquecer que perto do chão, entre a sola, a palmilha e a camada externa protetora do tênis, meu pé direito está encharcado. A temperatura ali está abaixo de zero. O calcanhar deve estar esbranquiçado e a ponta dos dedos devem estar enrugadas. O simulacro de silêncio estabelecido pelas pessoas me faz quase esquecer. Os carros ainda passam, mas a rua é um pouco afastada do corredor de ônibus. Aí alguém fala o que tenho escutado nos últimos doze meses “quero ver na copa!”.
E sempre tem alguém pra responder.
A conversa começa inflamada entre as duas pessoas. Porque falta uma semana para a copa, porque, “olha só, faz vinte minutos que não passa ônibus”.
“Porque onde moro só tem um ônibus que posso pegar”, e o outro responde que ele devia subir no ônibus e perguntar qual é a tabela horária que deveriam estar cumprindo. Quando subo no ônibus, arrisco um “boa noite” para o motorista, ele me olha com raiva. Porque alguém deve ter questionado o serviço dele. Penso em como a vida é maior que a tabela horária do ônibus, a copa e a chuva. Mas não maior que meu pé direito.
Em Walden, Thoreau diz que os raios que entram pela persiana não serão lembrados quando a persiana deixar de existir. O livro narra os dois anos, dois meses e dois dias que o autor se confinou no meio da mata, à beira do lago Walden. Longe da sociedade e suprindo suas próprias necessidades. É esse grau de elevação espiritual que queria. Não esse pé direito molhado, enrugado e gelado. Lá pelo meio do livro, ele fala que certas manhãs ficava sentado à porta ensolarada desde o nascer do sol até o meio dia, enlevado num devaneio, entre os pinheiros, as nogueiras e os sumagres, em serena solidão e quietude, enquanto as aves cantavam ao redor ou cruzavam a casa num voo silencioso, até que, com o sol batendo em minha janela ocidental ou o ruído da carroça de algum viajante na estrada à distância, era lembrado do passar do tempo.
A meditação silenciosa daqueles que esperam o ônibus está em outro plano. Pelo menos até entender que o silêncio na parada de ônibus é inversamente proporcional a presença de transporte coletivo.
Queríamos ver na copa. Queríamos ver as obras, os ônibus do dia seguinte. Queríamos ver mudança de matéria-prima em produto. Agora, afirmam, “vai ter copa sim” e “não vai ter copa”. O verbo muda, a situação nem tanto. Os problemas que deveriam ser colocados em um plano sutil acabam se colocando em primeiro plano. Quando o cobrador me disse que não tinha troco e eu senti vontade de xingar, não era eu falando, era meu pé direito. Era o desconforto social que sentimos e que nos vai sendo imposto aos poucos. Porque o cara da parada pediu pra ver na copa e o outro respondeu. Porque o motorista foi cobrado, porque não respondeu meu cumprimento. Essa raiva precisa ser tratada, lapidada e redirecionada. Não sei como. O máximo que posso fazer é mudar o foco. Que com meu pé esquerdo vai tudo muito bem, obrigado.
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